terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pequena.

Eu acho que és, pequena,
um pouco de sombra e luz.
Tens olhos e voz tão mansos,
é lá que me guardo
quando te olho.

Parece que és, pequena,
um pouco do que me salva,
e se tens tu um tanto
dessa meninice boa,
tens também algo que me resguarda
e que, por tolice,
me faz sentir medo em certas horas,
um medo bobo de te parecer pequeno
e teu olhar não ver no meu
mais além do que aquilo que vês
quando eu sorrio
e os olhos ficam pequenos.

Quando eu seguro tua mão,
traduzo um mundo
que pode ser meu
e sinto uma felicidade
de futuro bonito.
Teu afeto transcorre teu corpo
e se transforma em carinho.
Os olhos parecem pedir ressalva
e um abrigo que não nego.

Receio que és, pequena,
um tanto desse meu alento,
um pouco dessa minha calma.

Receio também que já é tarde,
não há como voltar atrás
agora que sei dos teus olhos,
da íris, da boca e dos teus sinais,
agora que reconheço, feliz,
os teus detalhes, tua minúcia,
tua nuca,
tua voz calma
e o sorriso.

Agora parece inevitável,
eu acho que és, pequena,
o meu futuro.

Vinho Tinto.

Se é tanto o vinho, o tinto, risonho,
se é triste esse copo que trinca o sonho,
maior é minha sede,
maior é o desejo de me desregrar.

Se é tamanha a tolice do álcool,
se tomando essa taça me sinto ator,
então represento meu ato alcoólico
pra atar-me a ti.

Tão logo tu tinge teus olhos, louca, e a cara,
e pinta também teus desejos de tequila,
pra só então emaranhar-te de volúpias,
e atuar com tuas pernas em mim.

Portanto é esse vinho que enerva,
e aumenta a vontade que se conserva,
no meu anseio inquietante, de manter-me ébrio,
e assim ferver tua respiração e teus lábios.

É lá de onde parte, meu porto de vícios,
ao parir teus olhares de vinho tinto,
um hiato,
e ao ver, dilatando minhas pupilas numa lata,
teu corpo pungente atuar como num teatro.

Moleque.

Na degradação dolorosa da vida,
o que nos sobra é um rosto
não mais que uma fossa,
manchada de escusas
e ressentimentos.

O que sobe é a dor na cabeça,
desregrada de docilidades,
abandonada numa felicidade
que não houve,
e que nem pode haver.

Não há o que negar
nem renegar num rosto vazio,
em que já não há
o que se enxergar,
nem de perto, nem de longe.

Um rosto que percebe,
na sua condição injusta,
que nada é o amanhã
e que essa dúvida
de viver ou vingar
é o que lhe resta para hoje.

Sem medo de morrer,
sem medo de apanhar.

Arranha-céu.

Subi três degraus
dos arranha-céus,
dolosos troncos falsos na terra,
fincados na dor dos outros,
lustrados em água de sal,
dolorosos céus,
pintados da cor do mal,
no penhasco, na encosta,
no abissal humor,
mal oceânico.

No alto arranha-céu,
penosos degraus
calorosos graus
de um sol tropical
entre os trópicos,
cancerígenos,
capricorniais,
acima do que suportam
os meus olhos normais,
que ardem além
dessas temperaturas.

Aquém demais,
a quem, às quais?
Subi alto às três,
às dez,
subi mais além
em tal viés de escadaria,
ao invés de me ausentar
no inferno,
e pensar, rancoroso,
no medo da morte.

Sem calar minha boca,
ao ceifar o calor nos lábios,
e pôr meus caminhos nos trilhos,
plantando a dor latejante na testa
a resvalar nos cílios.

Parece que subi mais
na minha tez,
ao invés de morrer,
fui percorrer o meu corpo
de vez.
E despolido passeei sem pudor,
sem pensar no pútrido,
no químico,
no orgânico.

Nos degraus,
do decrépito arranha-céu,
eu vi minha vida voar do alto.
Não invejais, no entanto,
essa posição de sol
nem essa sorte,
de ver do alto
a calamidade,
a cidade,
o assalto,
o sublime.

Não inveje, portanto,
essa morte minha,
o salto, o pulo,
a visão de todo
esse mal.
Galgue aos poucos,
teus graus,
teus degraus,
teu céu.

Me acorde, então,
às três, às dez, ou depois,
ao subires mais
e mais.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Lamento de Onda.

Na marcação do mar,
ritmo vulgar das ondas
a levar e trazer mistérios de mar
que caem consolados no marulho, do céu,
cada cria do mundo,
cada um que sai, a constelar e viver
cai ao naufrágio seguro do mar
no encalhar dos corais, dos cocos, do cais.

Na rotina do mar,
um marco de sal a salgar,
a velar a jangada que vai
a jangar a velada marcha da praia
do Guarujá a Jamaica
do Janga a Maragogi,
a contornar o caldo
da costa calada,
da dor do mar à noite.

Na poeira da praia a arar o vento
rumar o navegar da encosta ao mar
quando amanhecer, desmaiar,
nas manhãs vadias do acordar
é lançar-se à calmaria, e velejar
seja daqui pra lá,
seja pro além-mar
da Península Ibérica ao Mar de Aral.

Ater-me a pescar
e a andar na suave leveza da areia morna,
cansado na preguiça de tempo, de brisa,
ao deleitar-me e deitar-me,
a amainar minha cólera,
colher as velas
e minha enfermidade.

Na marcação do mar, navegar
ao barulho do susto, na polpa do barco,
ao transpirar o mormaço que marca,
ao mergulhar transeunte nas ondas,
num cardume de peixes,
no costume das águas,
um sargaço a deriva
ao cansaço de só
flutuar e nascer.

No amanhecer,
acalento tristonho de mar,
o mar parece esmaecer, ao ver,
o sol se afastando de lá.

domingo, 23 de novembro de 2008

A Vivência do Talvez.

A gente vai vivendo sem ver,
sem nos revelar pensamentos
numa sobriedade mórbida
continuando sem ver.

A gente, que vivendo sem ver,
acaba por cair no vício, no ócio,
sem perceber que há risco
de cair.

A gente vai vivendo sem ver
nós mesmos, sem ver ninguém,
nessa mordida de tempo,
que parece que vai levando,
viagem revelada sem volta.

Vivendo tanto sem ver, desassossego.
que às vezes um sonho cutuca
querendo dizer,
que sublinhei na perda dos sonhos
a saudade do que vai vir
e a do que não vivi.

A gente vai vivendo tanto ser ver,
que, quando acaba vindo um sonho,
na suave significação do talvez,
a gente esquece quem é,
mistura o que sente,
pensa que tá tudo errado
e provém o medo.

E aí quando a gente vê
que tá vivendo sem ver
e enxergando o nada,
ao invés virar o porém
e variar a vida,
angariar amores,
e ir, e ir,
seguimos e vamos,
enganando manadas
e emoções.

A gente vivendo sem ver,
na verdade são vários,
são os seres de mim
que habitam em nós.
Pois essa história de viver assim
não é normal.
O a gente sou eu.
Conflitante, conflituoso,
cáustico, caótico e enigmático,
na vertente de nadar sem enxergar horizonte.

Às vezes, ir vivendo sem ver,

parece melhor,
parece vantagem,
mas talvez não seja.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Olhar Distinto e Novo.

Vou pôr nos meus olhos a esperança, a confiança, maldizer a mágoa.
Vou passear nos meus olhos esse amálgama de sentimento bom,
bem como vivem os pássaros, os potros, os peixes e alguns poetas.

Vou trazer nos olhos dessa ingenuidade a vida que vive sem questionar.
Vou pôr nessa caverna límpida dos olhos aquelas todas lembranças
e no cristalino, na porta, no arco, no arcabouço, aquilo que há pra viver.

E pra dançar, nesse baile de esperança, vou pôr meus olhos e o corpo.
Vou pôr nas lágrimas agrestes de gosto amargo, o suave agridoce, o sol,
e essa vivência, esse deslanchar de choro alegre, de pranto, de pulo.

Vou trazer ainda para pôr nos olhos, e assim enxergar melhor esse tudo,
aquele mar que deságua domingo no balançar alado do vento na onda,
pra mergulhar, depois, nessa felicidade de céu, de areia, de nós.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Poema de Pedra Precisa.

Hoje é jóia
amanhã é jóia
no mais tardar a pérola,
ontem já era.

Hoje é jóia, rubi, esmeralda.
Amanhã é ouro, latente, quilate.
Amanhã é jóia, é jorro, é petróleo.
O futuro é água. O passado é fogo.

Amanhã é jóia, me jogo.
Teu pescoço é pérola,
teu amanhã é preciso,
é precioso.

Hoje é jóia, é rubi, me enrubesço, me alegro,
mas amanhã... amanhã é preciso, é precioso.
Amanhã é ágata, é alabastro, é calcita,
amanhã é jade, é jaspe, é safira.

Amanhã és tu, astuta,
de mármore, de amor, de mar, absoluta
da cor da esmeralda, do amálgama do mar e de tu.

Como o tanto de sol, de raio, de gracejo,
é turmalina amanhã, é turquesa, é topázio,
que, assim como hoje, é jóia.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O Sono de Berenice (ou O Choro da Noite).

Com o choro da noite ela dormiu,
assim como pássaros à meia-noite
assim como o mundo, que também dorme,
assim como a vida cheia de conselhos, de erros.

O choro da noite era um sussurro triste,
uma menina calada, inconsciente,
cansada dos arroubos da mãe,
e das frases mal-ditas do pai.

Ela continha uma ânsia de loucos,
um pranto de plantas à meia-noite,
uma suave dureza de sonhos,
um sono leve como um abrigo comprometido.

Mas com esse choro da noite ela dormiu,
assim como os cães,
- que mínguam melancólicos na madrugada -
assim como o descanso dos cegos
- que projetam fatos no seu olhar,
como na tela branca de um cinema mudo.

Na cama, essa menina pequena,
passava seus olhos sobre as roupas do cabide
e imaginava um homem soturno e sério,
altivo em seu magistral chapéu de palha
e num sobretudo surrado e negro.

Dormia guardada essa menina
com o choro da noite à sua vigília,
no escuro do quarto adormecida,
mesmo chorosa, insegura, pequena.

Era, talvez, o escuro que lhe assegurava
o sono, o sonho, o sentimento diurno.
Era, talvez, o escuro que lhe assustava,
nessa casa grande de ecos, de olhos selvagens,
de gatos sorrateiros nos telhados,
nas soleiras, nas portas e combogós.

Acolhia seu sono de respiro pausado
na cama, entre fronhas, lençóis,
e uma boneca de pano amassada
enlaçada nos braços, nas suas lembranças
e memórias ainda tão novas.

O choro da noite tinha um mistério de mar de madrugada,
de águas noturnas, soturnas, paradas,
de águas ausentes, um desejo de medo
ao se banhar sem luz,
num céu de nuvens distantes, ralas, fogosas,
e uma lua fraca, um vento velho,
naquela solidão íngreme da noite,
balançando as palhas de um quiosque
e os cabelos da menina no quarto.

Aquele vento de segredo, de sussurro,
que vinha do temor da beira da praia,
era ele que, zeloso,
trazia de lá o choro da noite,
pra acalentar o sono tranquilo da menina
e cessar o pranto ao tocar seus cílios.

O choro da noite,
aquele acervo cruel de pura intensidade,
era ele que engolia a própria noite,
quem sabe o dia, a tarde, o mundo
e toda aquela dinâmica do mar e do amor.

O choro da noite era aquele som distante
de desabafar a dor no travesseiro,
de desabafar o ódio mordendo os dentes.

Mas esse choro suave, noturno,
engolia os sonhos maus que a menina temia antes de dormir
e o medo daquela escuridão ficava retido nos jardins da casa
nos galhos da goiabeira,
nas minúsculas folhas do flamboyant,
na altura sisuda, e protetora, dos coqueiros.
As formigas também retinham esse medo em suas patas
e o enterravam ao redor dos problemas sérios,
à sombra da noite, nessa brisa suave de mistério.

A noite soprava aquele frio de Julho
e os lençóis se lançavam a flutuar com os brinquedos da menina.
O sono suave, intangível, melancólico e azul da pequena,
que imaginava outros tantos jogos pro dia seguinte
não parou de recontar os minutos de um dia que foi século.

Aquele canto da noite fazia adormecer os objetos
e sorvia no pranto dos outros o mal de todo mundo,
pra que tudo no quarto dormisse bem,
pra que o dia, ainda assim, acordasse belo e preguiçoso,
com os olhos ressacados de quem chorou a noite toda.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Cavaleiro.

No subúrbio
do urbano,
à margem do mundo humano,
pessoas.

No complexo
diário urbano.
Na beirada do sonho,
e da linha férrea,
humanos.

Lá no suburbano,
onde parece que pulsa mais intensa a vida
e onde a felicidade repulsa a tristeza,
tem feira de grito, tem apito, buzina,
tem a menina que chora pedindo um brinquedo simples,
tem gente que trabalha nessa badalar da vida
e aviva mais o sentimento da luta.

Mas na ida e na vinda do trem,
tem quem passe por baixo dos trilhos
e vacile.

Talvez na descida da estação,
no corre-corre pra ver quem chega primeiro,
tenha se desvencilhado,
- trem que há descarrilhado -
de uma linha, de uma mão perdida.

João mesmo
se cansou de ser nada
e só levar revés.
Ao invés de viver lamentando
se jogou perto das três
no meio da linha do trem,
depois de fumar dois cigarros
e cheirar um pouco de cola.

É delírio, é delírio.

Já Hugo tenta mudar a vida,
na escola, na música,
no sonho.
A realidade não dificulta o desejo,
pois se espelha no trilho de vida
de quem já pegou o trem.

No subúrbio,
que não é sub-humano,
é mais humano ainda,
tem espaço pra tudo,
gente tristonha, feliz,
alguns trabalham na feira,
na areia, poeira, barulho,
vendendo melancolias,
sapatos, baldes e ferros,
comidas diversas e frutas.

Há os que fogem, os que fingem,
onde os olhos saltam do lugar
e vão parar longe,
mas há também aqueles que vêem tudo passar
e ficam.
A vida se vai assim, junto a essa troca,
junto a esse trem, a esse tudo,
mas a alguns ela nem afeta.

É nesse subúrbio,
de histórias pequenas como uma alma nobre,
de sonhos simples e singelos,
assim como as ruas e o caminhar de todos,
que o sol guarda na silhueta das casas ao longe
a alegria do dia e medo da noite que vai embora,
logo depois de amanhecer de novo.

Poema de Alta Mar I e II

I

Onde miro, ao admirar-te?
E ao advertir-me, onde mirar?
Dónde puedo ponerme a girar
y a bailar para conocerte?

De mí ya he hecho mi parte.
Yo lo sé porque a ti me atiro,
me lanço como se lança uma onda,
me desfaço qual se faz o querer-te.

Calla tu ventre insalubre,

porque allá yo no puedo mirarte.
Tu cuerpo, yo sé, es un arte,
es mala como la olla del mar.

Pero el agua no puede salarte,
puesto que yo te respiro.
Eu sei que teu corpo admiro,
pero no hay como no admirarte.

II

Não há como eu me redimir
do olhar que me arde
e me mantém à parte.

Não sei mais se há tal sigilo,
tal signo de ir
sem mirar a quem parte.

Não sei mais se há tal respiro,
tal grito que pede
ao implorar, e afogar-se.

Tal fogo que queima não há,
pois não há no alto mar,
esse choro, que é água.

Não sei mais se é de salgar-te,
ou se te salvo,
se te afago, ou se olho.

Onde ponho tal verde de mar,
pra te camuflar por amar-te?

Meu mar já é teu e teus olhos,
meus sonhos de Vênus, de milhas.

Onde te salvo em tal ilha,
se tal ilha não há?

Meu mar, tal tormenta a me ressacar,
é vento a atirar tal assombro, tal onda.

Onde, então, pra salvar-me, posso ver-te
e verter esse mar de imaginar-te?

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

No Ar.

Vou lá no infinito,
parto eu pro universo inteiro,
através dessa janela cósmica,
que ilumina o luar de minha cama.

Vou lá no infinito agora,
sem compromisso terreno de voltar.
Avisem se for bonito, meu mito, meu partir,
de ir lá fora navegar e navegar, no ar.

Vou lá fora, através, não há,
na viagem de estrelas,
no mastro do mar,
no astro do barco,
no arco do céu,
no oceano inteiro.
Estou sem pressa de voltar.

Vou lá flutuar, cadente, nessa esfera,
vou explodir como estrela, e iluminar,
vou lá no azul, navegar no mar da vontade,
me desligar desse ar que arde
e rumar pra mais, pra lá, pra onde.

Vou lá navegar e beijar o mar,
como saliva a onda na beira
lamentando o chorar da praia.

Vou lá paquerar com o sol,
e me sentir areia,
viajar com a poeira dos céus,
viver o surgimento de tudo,
e observar de longe a todos
no luar da maré morta,
no solstício do inverno,
no eterno navegar.

Vou lá desprender meus pés
e ascender às estrelas na noite,
nesse azul escuro.
Vou me preservar no futuro
lá no infinito, no ar,
e voltar mais jovem,
pra saber daqui
e de como foi
quando não estive.

Partirei de imediato agora
no cosmos, no karma, no infinito todo,
meu corpo se fez de planeta,
de tudo que fez surgir o universo,
do pó, da terra, de todos os anos.

Vou nessa vontade de fugir,
vou lá navegar nesse mar afora
planar no mar e mergulhar agora,
eu vou fluir como a água,
entre os dedos do tempo.

Parto a viajar então, não outrora senão,
nessa vontade de conhecer o sonho.
Será que no além mar, onde vou lá,
onde os meus pés ponho, será que há?
Vou lá desconhecer,
me conhecer e flutuar, quem sabe,
virar mar de estrelas, e rumar,
virar céu, virar eterno, me eterizar,
e virar tudo no ar.

Vou buscar o mais,
sem mencionar o pós, ou o talvez,
pois não há pressa em regressar.

Posse.

Ainda que estejas solta,
enquanto és mar e tão cheia de sal,
plena neste ar que voas,
onde teu parentesco é o sol.
Ainda que insurjas
e que solva o céu,
ganhe nuvens de chuva
e escuros becos de tempo,
és tão da terra quanto eu,
és minha.

Embora teu olhos,
antes grandes, doces,
focados no absurdo
e nos meus,
ainda que não parem
ainda que entreolhem,
e embora tu flutues,
navegue, divague,
és ainda dessa sonda selvagem
do pensamento meu.

Embora já não tanto,
se aninhem, entretanto,
o teu acalanto só,
ao tempo, ao tudo que és
e a mim, és minha.
Embora tu pertenças
aos poucos, és muito.
E saiba tu de tudo,
dos tolos, dos tontos,
dos deuses, dos revoltos.
Cruzando no mundo és, contanto,
da selva dos olhos,
dos sólidos olhos meus.

Embora os teus braços divaguem
no baile tão simples do adeus
e os olhos, as lágrimas
e as mãos deságuem,
não esqueces, no entanto,
és mãe, és manhã,
és minha.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Sobre Nós.

Seja aqui ou em Uganda,
a lua que nos ilumina
crava sua luz diária sobre nós.

Sem saber quem somos,
displicentes, descuidados,
essa lua nos atinge aguda, indiferente.

Não sabe sobre mim, sobre nós,
e finge, ciente da existência na terra,
ser bela, como é, e ensaia sua volta.

Não se importa se está cheia
ou se míngua, enfadada, sua paciência.
Essa luz que nos clareia é igual.

Mas seja aqui ou no Nepal, tenho certeza,
onde quer que essa lua esteja, no céu,
longe da poeira dos astros, permanecerá crescente,

com seu poder sobre as marés, a sós,
nos tornando mais iguais, embasbacados,
crescendo soberana sobre nós.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Janela.

Vejo as luzes da favela
no escuro da janela
são luzes bonitas
são luzes amarelas.

Será que é bonita a favela?
Ou é ilusão da janela?
Um assalto na favela!
Uma morte na janela.

Quem será que matou ela?
Foram assaltantes da favela?
Ou foi ilusão da janela?

*primeira poesia: 29/03/2000

Um Ano.

Hoje Berenice faz um ano. Não nasceu em berço de ouro, nem foi estrela ao longo desse tempo, mas soube me marcar com sua melancolia chorosa, comum, inerente a qualquer pessoa, no entanto. Parece que o sol soube iluminar bem seu início, seu caminho. Hoje Berenice tem três quartos de amor intenso e uma lágrima. Não me interessa quem enxuga seu rosto, me interessa, como pai, aqueles que lhe compreendem.

Hoje, fazendo ela um ano, decidi colocar algo do que escrevi, mas só soube revisitar meu passado. Escolhi, então, minha primeira poesia, na qual não troquei uma vírgula, e que é increlvemente melhor do que muitas poesias que fiz depois. Alguns poemas desse meio percurso, entre o nascimento da minha escrita e o nascimento de Berenice, levam títulos um tanto quanto estranhos (Quando Aquilo; E se, e ela, e não, e ele), que dirá o próprio corpo do texto.

É interessante ver como já previa eu uma Berenice, que só agora, talvez, tenha ido à lua. Ao prever sentimentos futuros, mas de uma escrita ainda muito primária, falei sobre amor sem amar, sobre dor, sem sentir, e não tive medo de rimar palavras confusas ou desconexas. Juntei palavras sem saber o que estava dizendo, como se quisesse treinar, usar das palavras, sem ter motivo para tal. O motivo foi o futuro, desconfio. Foi ver que de algo vazio, pude extrair algo com um pouco mais de sentimento e clareza, posteriormente, às vezes ciente do que estava escrevendo, às vezes não.

No próximo post coloco, então, a primeira poesia que fiz, e que nesse entremeio foi a mais natural de todas, a que soube falar por si só, assim como eu creio que fala a verdadeira poesia.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Última Voz.

Será que minha doce alma vale a pena,
em conta dessa tua alma tão pequena?

Será que transcorre a estes meus passos mais uma novena?
Será que me acalentas
novamente?

Antes não tiveste tu a mim,
nem eu nunca quisesse haver-te querido.

Será que me encontras,
ou teus olhos fazem de conta
que não existo?

Percebes, então, meu perigo,
que apesar de tudo ainda és abrigo.
Tua voz me dá força,
me levanta.

Em meio a tantas outras vozes,
que não sigo,
a tua ecoa distante, solitária,
desperta minha força, me ativa.

Tua voz, em meus ouvidos, é saliva.
Corre doce, astuciosa, excitante.
Mas tua voz no pensamento,
se torna ácida e ausente.

Minhas veias, meus ouvidos, estão quentes,
da voz que me inspirou esse poema,
e de recordar e recordar,
mas se sentir acordado.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

José e Atílio.

Já não se encaram mais,
não pulam alto dos postes,
não se importam com o mundo.
Não soltam balões de hélio e nem perpassam a neblina,
voando a solta nos céus das cidades caretas
e dos pensamentos cinzas.

Passam desapercebidos e voam imóveis
em rios de veneno velho,
sorvem na boca essas gotas de chuva ácida,
na deriva dos instantes,
no fluxo do pensamento,
na maré morta.

Não pulam alto dos postes,
nem gritam sua felicidade sol a pino.
Não se arriscam na beirada do parapeito da vista,
onde a vertigem, homicida,
ilumina o olhar que não nota,
que é alto esse tempo que corta,
e é baixa essa altura da vida.

Enquanto eles falavam eu sonhava,
me drogava inerte,
absorto de palavras prenhes.
Pílulas pretas, pós, fármacos,
tão cheios de vida e apodrecimento.

Mas parece que esquecem,
que sorvem o ar infame,
tecem, fiam, cosem,
maquinalmente sobrevivem, labutam,
mas não merecem esse dia curto,
esse sentimento parco,
essa vida pouca,
tão cheia de esterco e estrume,
de lama, lamento e chorume.

Parece que o tempo, parceiro distante,
perdeu-se a toa nos contratempos
e foi planar longe,
sem direção,
sem rumo,
sem órbita.

Parece que a vida, prurido e pó,
passou perante os olhos perdida,
encurtada em distrações,
despistes e desperdícios.
Novenas, cadeias e quarentenas que de nada valem.

Parece que a areia, tão cheia de pó,
soltou-se sereia, com suas raízes de pedra,
e foi nadar só.
Desse tempo que anda,
de onde vem e vão ondas,
parece que foram juntos, os dois,
velejar sem o vento,
se afogar, sem o mar.

*baseado em trechos do curta "desavenças".

domingo, 7 de setembro de 2008

Dos Meus Olhares.

Por onde quiser, quereres,
onde estiver, e estares,
lá estou eu, e eles,
meus vãos olhos estúpidos e olhares.

Aos teus pés onde estiveres,
quem quer que sejas ou quem serás,
atrás de dez fatais prazeres banais,
a olhar a sós teus sóis a me iluminares.

Nos vãos lugares em que estiverdes,
que seja eu, que serdes mais,
pra que em minhas veias tu fluíres
e em minhas artérias tu caibais.

Dos meus olhares partem rentes,
pérfidas flechas sãs, mortais,
pois nos teus olhos, através, ausentes,
não passam mares, nem ares, jamais.


Não sedes mais na minha sede,
nem estende a flâmula fugaz,
pois em meus olhares quentes também eres
de sós olhos ferventes e canibais.

Traição.

Se cora-me o mundo diante d'eu,
decora a degola do imundo
ante o submundo meu.

Na aurora da rua tornou-me breu,
quiçá vou pro mundo da lua,
ante o submundo meu.

Me trata agora quem sabe teu,
pois cansei de ser lixo do mundo
ante o submundo meu.

Me joga distante no fosso do céu,
fugido habitante desse parco mundo
ante o submundo meu.

Tesoura-me cortante expondo-me esse sangue meu,
denigre, sutura, esse meu corte profundo
ante o submundo meu.

Me diz dessa amante, antes um amor meu,
fornica, fornece, dá ao mundo todo,
ante o desespero meu.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Brincadeira dos Anjos.

A brincadeira dos anjos acabou.
Na terra árida de ilusões diminutas
as paixões poetas se volveram em sonhos,
em anseios planos, pobres e tímidos.

A brincadeira dos anjos acabou mais cedo.
Na veia da inocência e da lembrança
não passa, vermelho, o sangue novo,
nem sorve esse fluxo da nossa necessidade.

A brincadeira dos anjos acabou, infelizmente.
Nessa terra úmida de alusões infecundas,
os papéis e escritos foram todos rasgados,
os acordos de paz, o sentimento de herói.

A brincadeira dos anjos acabou impura.
Devorou em seus braços uma dor tremenda
ao prever um futuro magro de desastres sólidos,
de mães soltas, pais desatentos, filhos renegados.

Os anjos, assim, voltaram da brincadeira.
Negros como os olhos das nuvens apocalípticas,
engendrados em um enredo tosco, sem graça,
com o desânimo nos rostos e a crise nas costas.

A brincadeira dos anjos já não é segura, acabou.
Na altura rasa do solo deixaram a marca do jogo.
Os pés pisados na terra, fecundos de tristeza e lama,
esterco e cinzas, fé e fruto, nostalgia e lágrima.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Os Olhos da Casa.

Na sala, os ouvidos do mundo
voltados pra televisão.
Os pais, a mãe, o avô, mudos
e o filho no quarto, na solidão.

Chegou atrasado na aula,
perdeu esperança em amor,
em cultura pra preencher o tempo,
e na rotina fincada ao longo dos dias.

Desamarrou os sapatos surrados,
num canto deixou a mochila
e dormiu, com cinco remédios pro sono
e outros três pro esquecimento.

De dia, na sala, todos acordam,
colocam no telejornal da manhã.
O pai, a mãe, o tio de ressaca, o avô, a irmã
tomam um café apressado de meias palavras,
de meios sentimentos engasgados,
junto com as bolachas,
o pão, e o talher.

No quarto ele continua dormindo,
num sono profundo, projétil pedante,
sem diálogo profano e o mundo ausente.
O ouvido do avô encosta na porta trancada,
queria saber o que se passava...
Mas de que adianta isso tudo, pensa ele,
põe os ouvidos no telejornal, na sala, na novela,
que se confundem,
e já saberás onde andam os ouvidos que ouvem essa casa.

Deu meio-dia no quarto
e ele nem havia acordado.
Dormiria mais uma vida em segredo,
se necessário.
Quem saberia do que seus olhos vêem?
Do que se anda pelo mundo
e os passos desabrigados que ele dá na rua?
Os olhos da casa estão virados,
os olhos da casa não enxergam a um palmo.
Todos estão ligados em outras coisas.

A Língua.

A língua lambe o céu da boca.
A língua, lânguida, longínqua,
libera a libido, longe, solta
e pinta o paralelo da lua,
a língua, indistinta, leve, louca.

Aos lábios a língua saliva,
lubrifica lacante a boca alheia,
no lounge do limbo excita a veia,
na luta cavalar que trava lá,
sem lógica, lugar ou moral.

A lascívia dos olhos, que lacrimeja,
a leste dos lábios, e longe da língua.
Aos olhos invade a inveja, que almeja
a longitude dos lábios, sua luxúria,
seu lugar lúbrico e a liberdade do labor.

Ao lavrar sua lástima, deseja a língua,
livrar-se das lágrimas latentes dos olhos,
e o fala dos lugares lúdicos que só ele vê,
da beleza das letras, e o lançar do amor,
que aos lábios e línguas lhe podem tocar.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O Emanar Invisível d'Alma Urbana

Aos olhos do turista,
que no alto da janela despressurizada do avião,
o Recife que ele avista,
tão tarde, tão cheio de si,
não passa somente de uma Veneza,
pois Veneza, Recife não é.
Recife que cresceu,
sem querer perder o charme de ruas antigas
e deixou suas vielas
com o tamanho das veias,
dos cidadãos.

Aos pés dessa terrinha onde ele pisa
com histórias escritas e enterradas,
de um passado que insiste em perdurar,
dormem sonhos bucólicos,
glórias adormecidas,
revoltas sufocadas,
hoje sufocadas na garganta do povo,
nos sentimentos guardados
em ideais da lama
e do suor do centro.

Com os pés na Boa Vista, ou na Viagem,
essa bagagem de turista não almeja,
a profundidade de um Recife
que vai além do que vê sua vista,
ou do que falam encartes,
iscas de passaporte.
A província recifense é quem vence,
nesse encontro onde todos se conhecem,
um Recife de viela,
que nunca deixou de ser vila.
Nem nunca quis deixar de ser.

Dormem sonhos emanados,
dos orvalhos das árvores do Espinheiro,
e dos telhados envelhecidos de São José,
com seu cheiro de mofo,
com sua madeira podre,
e a alma distinta,
de um povo que a toda hora é nobre,
e a toda hora se diz grande,
espelho onde o mundo mira,
onde o mundo se transforma,
onde o mundo, simplesmente, nasce.

Caos no Cais.

No Cais do Recife,
dei adeus a vida.
A saudade inchou meus pulmões,
e os peixes do oceano sujo,
que amanheceram boiando,
às margens do Capibaribe.

No rio de terra que plantei infecundo,
nasceram palavras à toa,
boiando à deriva,
num mar que Recife não mostrou,
nos arranhões que fizeram minha veia sangrar,
nos tubarões que passeiam à beira do mar.

Se há cais na Aurora,
meu riso desata e chora,
ao ver o Recife inundar.
A água que nasce esse hora,
e brota dos olhos, do pranto,
é um rio desejo formar,
invade minha alma aqui dentro,
com móveis, colchões e recantos,
e os sonhos que eu ia criar.

Se há caos na Aurora,
minha veia dilata agora
de imensidão, de sol.
Se há caos no Apolo
meus nervos fecundam o solo
e fazem junto essa dança, esse passo.
Se há caos na Alfândega,
me embaraço,
perco noção do espaço,
e o cérebro vira almôndega.
Se há caos no Cais de Santa Rita,
nas linhas que enchem a capital
me grita à cabeça o motorista,
e perco a hora do bacurau.

Se o ônibus não transita,
é a Conde da Boa Vista, motorista,
abre essa porta de trás,
abre a janela, não insista,
que o sol não me põe uma hora a mais,
o calor que emana lá da pista,
só me faz desaguar em maus lençóis
e não chego, nem fudendo, antes das dez.

Solidão na Casa Velha.

Quando calei-me de pijama,
vestido de rios de espermas que correm,
foi só na terra que quis transformar-me,
ser a terra
e flutuar.

Me levaram ao mar de pescadores surdos,
cumprindo, no absurdo do infinito do mar,
a tarefa diária, como peixes,
mas esquecendo no quarto a mulher sozinha,
o filho com fome, sobrinho desdentado,
e a sogra morta
na calada da noite.

É como um corte de foice,
a machadada veluda,
a pancada suave no coração.
Me tirem a pele, o luto, a labuta,
mas não tirem esse rio bonito,
esse mar que deságua
lá na calçada de casa,
e vem banhar os meus pés,
tão cheio de lixo,
tão cheio de podre.

Fui eu que abandonei esta terra,
destronei filhos, fiz política.
Na minha vida de rios,
de desejos passageiros
e de sonhos frustrados,
me tornei senhor de mim mesmo,
imperador desta desterrada casa,
tão cheia do cheiro da infância,
tão cheia das brincadeiras
e daquelas conversas no muro,
até a alta meia-noite.

De madrugada não durmo.
Esse cheiro de madeira velha,
esse mal-acordar noturno,
com as lembranças desgastadas, a saudade,
e as paredes vazias.
Não há retrato,
o fato diário nesta casa sou eu,
eu que já fui menino doente,
já fui menino solto, danado,
hoje, sou eu,
desiludido, descontente,
o filho mais novo que guarda
essa casa tão cheia de ontem
com peso da memória de todos,
o peso difícil da família,
o peso pungente e o sacrifício.

É meu esse tato,
esse cheiro,
esse mofo,
esse chão incorreto,
essa terra destruída,
onde não há fantasmas,
onde há pouco habitou,
pai, mãe, irmãos.

Não sei do jardim bonito,
dos coqueiros podados a cada seis meses.
O que me importa os cuidados da casa,
se já não há casa, nem acolhimento?
Não há frondosas árvores,
nem frutas colhidas,
nem aventuras nos pés, nos galhos.
Não há mais natais,
e suas luzes de cores,
só resta essa natureza morta,
a alma morta da casa.
Nos rangidos da porta,
nos gritos diurnos,
nos passos de gatos sorrateiros,
me escondo.

Não há onde ande por aqui,
e não esteja uma imagem, um mar, um rio.
Carregar este fardo é um desafio,
e o pior, me penhoro, me pioro,
pois só o mundo, talvez, abarque,
e eu abarco,
os resquícios e o pó dessa casa velha.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Desvelo.

Entre palavras ditas e não ditas,
entre lembranças que agora guardo,
fecho para sempre o enlace que me une a ti,
e as barbáries que te disse na ingenuidade.

Tu, que me amaste com tudo,
que deste semanas de pensamento a mim,
quem sabe anos,
hoje guardo,
hoje me vejo obrigado a guardar.

Não concluo nada nisto que escrevo,
é o pouco que tenho a te dar,
pois não há nada que já não tenha sido dito,
e nem nada que deva mais ser falado.

É sem choro que guardo,
é sem choro que te devo guardar,
sem desvelo, desencanto,
sem nada.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Doença da Boca.

Se é tola a doença da boca,
que assola, consome, corrói,
tão tola é a vida, que louca,
assoma com o sumo e destrói.

Voz rouca d’uma doída crença
abre uma chaga, inflama e dói
traz firme e transforma a doença,
que solta nas chamas se reconstrói.

Dos lábios viscosos lanço a ogiva,
que explode nos lírios, à veia atroz,
pois, forte, esse ardor alastra a vida.

Não some esse ácido, que feroz,
craveja na boca, abre a gengiva,
e lança o seu hálito sobre nós.

Os Conselheiros da Noite.

Às onze da noite deslizo,
na cama com insônia,
sonhando suado
nos vãos espaçados
dos nós da cama.

Dos nós que desato,
no sono do leito,
anjos e diabos voam soltos,
rios e riachos deságuam revoltos
sussurrantes no extremo lá da foz.

Meu corpo transmuta a objeto
na ponta da cama em que me deito,
onde projeto sonhos, desejos, dejetos
e bem perto da cabeça passam
gotas de luzes,
sono abscesso,
dentes podres,
textos pobres,
doces ilusões.

Atrás do pensamento onde corre
esse momento noturno que agarro,
nessa insônia em que acendo um cigarro,
e paro pra pensar nos detalhes do dia,
na viga da rotina encravada
na espinha dorsal do meu corpo
e do corpo de um mundo todo,
cheio de mim, e egoísta,
com medo do escuro
antes de dormir.
Esse dormir que não chega.

Não me deixe aos peixes dos lençóis da cama,
essas ferozes presas de escama ardente,
com o seu veneno pleno e tão feroz de serpente,
e seu calor de delírio que me alimenta a chama.

Não deixe essa insônia,
rio, riacho,
grama e pasto,
acabar com o sonho do menino,
com as angústias sadias, secretas
que correm velozes como um rio.

Me deixe que grite a tais sussurros,
e alto o meu urro atinja a lua,
me solte tão louco nessa vida crua,
nesse mundo calado, cansado, inseguro.

Gritando mudo na cama,
minha veia inflama a tais desvarios,
a saliva das almas deságua em rios,
que saltam da boca,
mínguam entre lençóis manchados,
e se fundem às entranhas da pele,
e aos bichos que dormem
por sob minha nuca,
sob meu teto,
e meu pensamento.

Por entre anjos, se afasta sorrateiro o demo
e se acanha soturno embaixo do travesseiro,
pra dormir, conselheiro, aos meus ouvidos loucos.
Então, de manhã, quando menos espero,
pronto pra um dia que amanhece altivo,
acordo desperto e encerro a noite, vivo,
com a alma tranqüila e endiabrada.

Queimem.

Queimem meu passado envelhecido,
fazendo desgraças com sua dança,
corroído por traças, travoso vício,
devorando solto as paginas de meus livros.

Queimem, afinal, meus livros e lembranças.
Quem necessita de tais memórias?
Queimem, então, a minha memória.
Queimem, é preciso.

Quem me deu mais desse tempo,
e criou Cronos a reger séculos,
a reger dores, e a curá-las
quando bem entende?

Nestas folhas de caderno,
este erro aberto a escárnios,
a represálias de ódio e sarcasmo,
em seus sussurros evoluídos
e gritos de dor,
escrevo frases forçadas,
com suas revoltas tolas.

Queimem meu chão,
meu colchão, meçam a dor.
Que o ardor da prisão,
onde queimam nos pavilhões,
outros tantos colchões,
de revolta, de doenças,
e de crimes de amor,
não me deu liberdade
e criou-me covarde,
nessa ansiedade infame.

Queimem também meu nome
e quem sabe a idade,
pendurada na porta
com essa placa de parto,
e essa mãe quase morta
respirando por tubos de adrenalina,
e sonhando com os sonhos da morfina,
mais belos, com certeza,
que meus sonhos mais banais.

Sem carregar o meu nome, todavia,
queimado a sorte de uma infância tardia,
não vi queimar-me esse fogo,
e às chamas me atirei, de novo,
superando o pesar da covardia.

Mas quem me deu tanta discórdia,
tanta falência múltipla?
Me deixem as canções,
que é o que sobra,
e queimem retratos
colchões, melodramas.
Queimem também minha cama
meio leito, minha história,
e no canto sagrado de um quarto
renasçam num parto esse outro sujeito,
um novo ser já desfeito
de suas mais vivas memórias.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Aos Pés da Palavra.

Me perco,
me calo
e me acho
no fosso da lembrança,
no ralo.

Não é apelo o que falo,
é que me esgoto.
Só há desgosto,
esgoto, escória
e asco.
Só há veneno de rato.

Onde me rendo,
é na palavra,
e surpreendo coisas,
pessoas,
levanto voo,
plano por sobre montanhas
e planícies fecundas,
açudes redondos,
regalos.

Do teto saem
palavras,
que tolas caem
num ciclo
resvaladas nos braços,
expulsadas dos pulsos,
distraídas
no colo.

Aos pés da palavra imploro,
que me rogue espírito,
que vença a lembrança,
e veja a vida passar.

Aos pés da palavra isolo,
aflições, terrorismos,
bombas, insônias de grito alto
palavras de salto alto.

É ao pé da palavra onde choro,
e onde o solo encerra a lágrima,
esta palavra, que ácida,
não comove a terra,
nem lavra o chão,
nem planta angústia.

Não move moinhos,
nem sonhos,
não desperta a ira dos loucos,
nem desponta as flores,
de selvas, de campos,
de jardins regados por velhinhos aposentados às seis da manhã.

Eu quis soltos
os pássaros,
com seu cantar rouco
e as pautas de aço onde pousam.

De tanto quer tudo,
e equivocar-me,
obtive um tanto do mundo,
dos homens,
dos cérebros bondosos,
de dos defeitos de tudo.

De tanto querer tudo,
equivoquei-me.



domingo, 18 de maio de 2008

Insoníferos.

Eu vou fazer a barba com pinça,
cortar os pulsos de verde.

É nesse momento que me arrasto à porta,
miro, caótico, meus olhos vermelhos
e prendo meus dedos nas fendas enferrujadas.

Eu vou cortar meus cabelos baixos,
como um louco,
pois eu acho pouco essa ferida baixa,
essa dor calada.

É nesse momento que me olho profundo no espelho
e choro, neurótico, uma lágrima que corta.

Meu pranto tem sabor de desvelo,
saca a própria arma do bolso
e atira uma bala à nuca.

Não perco o prazer de olhar o espelho,
enigmático, pois é agora que ao atirar
a chuva nasce, como num resvalar de pingos
nas palhas dos coqueiros.

Minha lágrima irriga os pensamentos
no sul de meu corpo,
e alimenta a insônia rouca das madrugadas.
Muda como a solidão.
Calada.

Me faço indagar três semanas de alegria
e planto, no mato, no póro, sem alvará,
um choro, um pranto, um raio de sol.

É nessa hora que mato a lágrima,
e que a esperança se espalha, como um vírus.
Não olho mais pro espelho, e me esqueço.
Minha face me cansa, e meus olhos.

Parado de noite penso na vida.
De que adianta a liberdade só?
Se não há a quem dar no outro dia:
"Bom dia, flor do meu dia,
bom dia, raio de sol."?

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O Corpo ou Algo ao Lado.

Tenho a mão perto dos olhos
tenho a tristeza que acena ao lado
faz um carinho na cabeça
me beija a nuca
e dorme.

Tenho nas mãos o teu poema afiado
tenho o teu choro, no papel, secando
me molha a pele
me traz um sonho
e some.

Tenho no rosto um dos póros sangrando
tenho um olho profundo que por dentro me olha
me esquece sozinho na cama
me diz duas palavras ao ouvido
me consome.

Tem um mar
e no fundo me afogas.
Tem um espaço
entre eu e ela.
Tem minha cabeça
com anseios torpes.
Minha junção da perna com o joelho
meus ombros e costas
a ponta dos dedos dos pés
a mão cansada de escrever
o coração que se cansa
e o pensamento que dói.

Monólogo na Cozinha.

- Eu acho que amar é o único anseio que nos resta hoje em dia, Ana. Não há mais revolução, ninguém acredita na política, poucos querem mudar o mundo, Ana. Então o que nos resta é amar. Pra quê fazer revolução, Ana, se eu posso ter você todos os dias aqui nesse apartamento. O mundo acaba, Ana, quando nos encerramos aqui, nesse "sala e quarto" pago em aluguéis tão razoáveis. Acabou. Esse papo chato de emprego, de empresas júniors, de investimentos pessoais, de marketing avançado, de crescimento econômico e social, ascensão profissional, gastos mensais... Ninguém quer saber mais disso, Ana. O mundo se encerra quando se ama. Não há adolescente hoje que não queira apenas amar e consumir. E consumir já é um ramo que nasce da árvore que é amar, porque qual o sentindo de consumir que não seja o de aparecer para ter, e ter para atrair? Tudo bem que hoje é melhor se ter do que ser, mas isso é errado, Ana. As pessoas de hoje só querem é amar mesmo, é tudo voltado pro amor, mesmo que equivocadamente, é tudo voltado pra ele. Os deputados desejam despir-se de seus paletós, assim como empresários e funcionários públicos. O estudante quer tirar sua farda, e ficar nu para o mundo. E amar. Eu só vejo isso, Ana. Vivemos uma crise existencial de proporções quilométricas, Ana! Você não percebe? As pessoas não são mais, elas vivem para ser algo, e no fim da vida percebem que não foram nada. No fundo elas queriam amar, Ana. Mais do que amaram, mais do que viveram. Todos querem despir-se, se libertar de vez e andarem livres no meio da rua. Você não percebe? Está todo mundo aflito, e a juventude mais ainda, porque está reprimida em sua plenitude de amar, porque ninguém permite a eles, que passaram a vida escutando, que passaram a vida recebendo exigências de melhoras de vida. Falam que é necessário ser alguém a toda hora, mas não sabem que esse ser alguém é, na verdade, se destruir para não ser nada e ter dinheiro para ganhar o mundo. Mas não se ganha o mundo com dinheiro, Ana. O mundo se ganha com amor, esse amor que é tolhido desde da infância, essa pureza que nos é tirada desde quando pequenos. Eu te amo desde pequeno e o mundo se basta somente quando te tenho. E assim segue com o resto das pessoas. Quem quer crescimento de vida quando se tem a quem se dedicar, quando se tem alguém que lhe admira? O mundo se encerra, Ana. O mundo se explode. É por isso que hoje ninguém quer mais revolução, ninguém quer mais política, estão todos ausentes das questões que as envolvem, porque estão todos sozinhos. A solidão aumentou. E quanto mais ela aumenta, mais se sente a necessidade de amar, Ana. E quando estamos sozinhos, desejamos cada vez mais estar menos sozinhos e andar por aí, pela vida, errando, tentando suprir uma vontade cada vez maior de não estar só, e se ter alguém para conversar num fim de tarde. É isso que as pessoas sentem. É por isso que vivem correndo atrás de objetos fúteis, de saídas furadas e de conversas quaisquer. É por que sentem esse desejo de estar com alguém, de se despir, Ana, e de amar. Tudo se resume a isso.
- Olha! Tua papa tá pronta.
- Poxa, valeu.

Papo Funesto de Fim de Tarde.

- Sabe, Ana, eu não tenho medo da morte.
- E porque haveria de ter? Você é tão cheio de si, tão aventureiro.
- Não é isso, Ana. É que eu não me imagino sentindo dor ao morrer. Eu acho que a dor, a dor verdadeira que se sente, é só para aqueles que ficam, só para aqueles que continuam na vida e sentem saudade. Eu teria saudade de você, Ana, se não estivesse morto. Estando morto eu não sentiria nada.
- Eu não queria que você morresse. Você me faria falta.
- Por que te faria falta?
- Ah! Sei lá. Você cuida tão bem da casa, lava minhas roupas, minhas calcinhas.
- Ha! Engraçada!
- Você sabe que não. Eu sentiria falta do seu corpo, das suas conversas bestas. Desse seu olho profundo que insiste em ficar me olhando. Do sorriso que tu me dá quando eu sorrio de volta e dos abraços. Dessas palavras bonitas que tu me diz, insistindo que meus olhos são teus, que minha boca também e que meu nariz é bonito.
- Ah! Mas seu nariz é bonito.
- Puf! Lá vem tu de novo com essa história.
- Eu gosto de você do jeito que você é, Ana.
- Não precisa me deixar com vergonha, né?
- Mas está vendo você: se eu morresse, a quantidade de coisas que você sentiria falta. Agora me diga: quem morre está sentindo alguma coisa? Quem morre está na pior? Claro que não. Não há sentimentos quando a gente morre, Ana. A não ser antes da morte, mas antes da morte ainda é vida. Nós morremos como se morre uma barata, uma muriçoca. E aí depois é o nada, assim como era o nada pra gente, antes de a gente nascer. Você me entende?
- Você também está sendo radical.
- Por que?
- E as almas? E aquela galera que ama tanto, e de verdade, que volta pra dormir com a pessoa amada, que fica puxando o pé do outro a noite para chamar a atenção?
- Isso aí é outra história, Ana. E esse negócio de puxar o pé não tem nada a ver com pessoa amada. Isso é lenda de interior.
- Eu acredito em lenda do interior.
- Continue acreditando.
- Você é cabeça dura, Carlos. Mas eu gosto de você mesmo assim.
- Sabe, Ana, eu queria poder ver o fim do mundo, o apocalipse. Eu gosto dessas coisas. Imgina? Os prédios caindo, bolas de fogo no céu, as pessoas correndo. Eu não teria medo de morrer, sabe? Eu teria medo somente de morrer logo e não poder ficar mais um tempo pra ver, de fato, o fim do mundo. Aí seria chato. Poxa, se eu tô no fim do mundo, eu quero ver o mundo acabar, até o final.
- Eu hein!
- Não, veja só! Eu acho até que penso de uma maneira bem humanitária em relação a isso. Eu sempre fui assim. Sabe quando você se dá mal em uma prova do colégio e deseja, no fundo, que todo mundo se dê mal também pra você ficar na média?
- Sei.
- Pronto, é mais ou menos assim. Se ocorresse o fim do mundo, e eu pudesse ver, eu ficaria feliz, porque estaria todo mundo morrendo também, e eu indo junto, todos juntos. Seria muito bonito. Era o que me reconfortaria. O fim do mundo não é feio, Ana, porque se morrer todo mundo, ninguém vai sofrer de saudade, ninguém vai sofrer de lembrança, e o homem se acaba de vez.
- Que papo estranho, Carlos. De onde tu tirou isso?
- Ah! Eu pensei agora. Mas assim, eu não queria estar sozinho no fim do mundo. Eu morreria muito melhor se você estivesse contigo, correndo das bolas de fogo, mergulhando em lagos ferventes, se esquivando dos prédios que caem e dos tremores que racham a terra.
- Nossa!
- Eu estaria muito melhor com você, Ana. E te amaria profundamente antes do fim do mundo, só pra não sentir saudade, caso a alma depois nos pertube. Eu te amaria sozinho, e você também. E eu iria sentir, que mesmo com o mundo acabando, eu teria o mundo pra mim com você ao meu lado.
- Poxa! Que bonitinho!
- Gostou? Eu inventei agora.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Estrada de Belém.

Pela rua passa
uma senhora corcunda,
um homem de bicicleta
que faz a entrega da água
e um moço amputado que pede

moedas pra sobreviver.

Pela rua passa
uma menina que atravessa,
um cego que pede auxílio,
um vendedor de frutas
e um homem que se interessa

em uvas para comer.

Na calçada da rua passa
uma carroça de ambulante
vendendo pipocas e doces,
bombons e cachorros-quentes
além de batatas-fritas

para quem desejar comprar.

No meio da rua passa
um gato domesticado
e um cão desorientado
que pára pra coçar as costas,
mas busca nos lixos, nas valas,

uns restos pra mastigar.

Pela rua, na sombra, passa
uma velhinha doente,
que está com os dias contados,
e uma mocinha tristonha
largada pelo namorado

com as flores que veio a ganhar.

À tardinha, na rua, passa
uma moça com brinco de argola,
um vendedor de pirulitos de tábua,
uma mãe que segura a criança
e um pobre pedinte que implora

esmolas a mendigar.

No fim da tarde, na rua, passa
um padre que pede a bênção,
dá a esmola ao mendigo,
olha pra cruz da igreja, e entra
pra rezar a missa da sexta

e as beatas e as hóstias a voar.

Na rua, de noite, passa
um amante atrasado, ansioso
com o relógio de ouro no braço
e um perfume de rosas barato,
que pôs no cabelo e pescoço

pra a amada singela cheirar.

Passa na rua, no fim da noite
uma mulher grávida.
Havia encontrado o amante,
mas agora corre depressa,
descobriu que vai ser menino

e precisa ao seu noivo contar.

De madrugada, na rua, se ouve
os passos de homens estranhos.
O medo da menina aumenta,
se enrola nas fronhas e sonhos,
passou o dia brincando

e agora espera a noite ceder.

De madrugada, na rua, 'inda passam
meninos distantes, desnudos,
despidos de sentimentos,
com a fome de um dia inteiro,
guardando farelos com fungos

pro dia que vai nascer.

Às quatro da matina invadem,
velhinhos que caminham na rua.
Despertam a dor do sono dos outros,
e correm soltos pra soar os sinos.
Acordam os homens que voltam

à rua, pra poder viver.