quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Brincadeira dos Anjos.

A brincadeira dos anjos acabou.
Na terra árida de ilusões diminutas
as paixões poetas se volveram em sonhos,
em anseios planos, pobres e tímidos.

A brincadeira dos anjos acabou mais cedo.
Na veia da inocência e da lembrança
não passa, vermelho, o sangue novo,
nem sorve esse fluxo da nossa necessidade.

A brincadeira dos anjos acabou, infelizmente.
Nessa terra úmida de alusões infecundas,
os papéis e escritos foram todos rasgados,
os acordos de paz, o sentimento de herói.

A brincadeira dos anjos acabou impura.
Devorou em seus braços uma dor tremenda
ao prever um futuro magro de desastres sólidos,
de mães soltas, pais desatentos, filhos renegados.

Os anjos, assim, voltaram da brincadeira.
Negros como os olhos das nuvens apocalípticas,
engendrados em um enredo tosco, sem graça,
com o desânimo nos rostos e a crise nas costas.

A brincadeira dos anjos já não é segura, acabou.
Na altura rasa do solo deixaram a marca do jogo.
Os pés pisados na terra, fecundos de tristeza e lama,
esterco e cinzas, fé e fruto, nostalgia e lágrima.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Os Olhos da Casa.

Na sala, os ouvidos do mundo
voltados pra televisão.
Os pais, a mãe, o avô, mudos
e o filho no quarto, na solidão.

Chegou atrasado na aula,
perdeu esperança em amor,
em cultura pra preencher o tempo,
e na rotina fincada ao longo dos dias.

Desamarrou os sapatos surrados,
num canto deixou a mochila
e dormiu, com cinco remédios pro sono
e outros três pro esquecimento.

De dia, na sala, todos acordam,
colocam no telejornal da manhã.
O pai, a mãe, o tio de ressaca, o avô, a irmã
tomam um café apressado de meias palavras,
de meios sentimentos engasgados,
junto com as bolachas,
o pão, e o talher.

No quarto ele continua dormindo,
num sono profundo, projétil pedante,
sem diálogo profano e o mundo ausente.
O ouvido do avô encosta na porta trancada,
queria saber o que se passava...
Mas de que adianta isso tudo, pensa ele,
põe os ouvidos no telejornal, na sala, na novela,
que se confundem,
e já saberás onde andam os ouvidos que ouvem essa casa.

Deu meio-dia no quarto
e ele nem havia acordado.
Dormiria mais uma vida em segredo,
se necessário.
Quem saberia do que seus olhos vêem?
Do que se anda pelo mundo
e os passos desabrigados que ele dá na rua?
Os olhos da casa estão virados,
os olhos da casa não enxergam a um palmo.
Todos estão ligados em outras coisas.

A Língua.

A língua lambe o céu da boca.
A língua, lânguida, longínqua,
libera a libido, longe, solta
e pinta o paralelo da lua,
a língua, indistinta, leve, louca.

Aos lábios a língua saliva,
lubrifica lacante a boca alheia,
no lounge do limbo excita a veia,
na luta cavalar que trava lá,
sem lógica, lugar ou moral.

A lascívia dos olhos, que lacrimeja,
a leste dos lábios, e longe da língua.
Aos olhos invade a inveja, que almeja
a longitude dos lábios, sua luxúria,
seu lugar lúbrico e a liberdade do labor.

Ao lavrar sua lástima, deseja a língua,
livrar-se das lágrimas latentes dos olhos,
e o fala dos lugares lúdicos que só ele vê,
da beleza das letras, e o lançar do amor,
que aos lábios e línguas lhe podem tocar.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O Emanar Invisível d'Alma Urbana

Aos olhos do turista,
que no alto da janela despressurizada do avião,
o Recife que ele avista,
tão tarde, tão cheio de si,
não passa somente de uma Veneza,
pois Veneza, Recife não é.
Recife que cresceu,
sem querer perder o charme de ruas antigas
e deixou suas vielas
com o tamanho das veias,
dos cidadãos.

Aos pés dessa terrinha onde ele pisa
com histórias escritas e enterradas,
de um passado que insiste em perdurar,
dormem sonhos bucólicos,
glórias adormecidas,
revoltas sufocadas,
hoje sufocadas na garganta do povo,
nos sentimentos guardados
em ideais da lama
e do suor do centro.

Com os pés na Boa Vista, ou na Viagem,
essa bagagem de turista não almeja,
a profundidade de um Recife
que vai além do que vê sua vista,
ou do que falam encartes,
iscas de passaporte.
A província recifense é quem vence,
nesse encontro onde todos se conhecem,
um Recife de viela,
que nunca deixou de ser vila.
Nem nunca quis deixar de ser.

Dormem sonhos emanados,
dos orvalhos das árvores do Espinheiro,
e dos telhados envelhecidos de São José,
com seu cheiro de mofo,
com sua madeira podre,
e a alma distinta,
de um povo que a toda hora é nobre,
e a toda hora se diz grande,
espelho onde o mundo mira,
onde o mundo se transforma,
onde o mundo, simplesmente, nasce.

Caos no Cais.

No Cais do Recife,
dei adeus a vida.
A saudade inchou meus pulmões,
e os peixes do oceano sujo,
que amanheceram boiando,
às margens do Capibaribe.

No rio de terra que plantei infecundo,
nasceram palavras à toa,
boiando à deriva,
num mar que Recife não mostrou,
nos arranhões que fizeram minha veia sangrar,
nos tubarões que passeiam à beira do mar.

Se há cais na Aurora,
meu riso desata e chora,
ao ver o Recife inundar.
A água que nasce esse hora,
e brota dos olhos, do pranto,
é um rio desejo formar,
invade minha alma aqui dentro,
com móveis, colchões e recantos,
e os sonhos que eu ia criar.

Se há caos na Aurora,
minha veia dilata agora
de imensidão, de sol.
Se há caos no Apolo
meus nervos fecundam o solo
e fazem junto essa dança, esse passo.
Se há caos na Alfândega,
me embaraço,
perco noção do espaço,
e o cérebro vira almôndega.
Se há caos no Cais de Santa Rita,
nas linhas que enchem a capital
me grita à cabeça o motorista,
e perco a hora do bacurau.

Se o ônibus não transita,
é a Conde da Boa Vista, motorista,
abre essa porta de trás,
abre a janela, não insista,
que o sol não me põe uma hora a mais,
o calor que emana lá da pista,
só me faz desaguar em maus lençóis
e não chego, nem fudendo, antes das dez.

Solidão na Casa Velha.

Quando calei-me de pijama,
vestido de rios de espermas que correm,
foi só na terra que quis transformar-me,
ser a terra
e flutuar.

Me levaram ao mar de pescadores surdos,
cumprindo, no absurdo do infinito do mar,
a tarefa diária, como peixes,
mas esquecendo no quarto a mulher sozinha,
o filho com fome, sobrinho desdentado,
e a sogra morta
na calada da noite.

É como um corte de foice,
a machadada veluda,
a pancada suave no coração.
Me tirem a pele, o luto, a labuta,
mas não tirem esse rio bonito,
esse mar que deságua
lá na calçada de casa,
e vem banhar os meus pés,
tão cheio de lixo,
tão cheio de podre.

Fui eu que abandonei esta terra,
destronei filhos, fiz política.
Na minha vida de rios,
de desejos passageiros
e de sonhos frustrados,
me tornei senhor de mim mesmo,
imperador desta desterrada casa,
tão cheia do cheiro da infância,
tão cheia das brincadeiras
e daquelas conversas no muro,
até a alta meia-noite.

De madrugada não durmo.
Esse cheiro de madeira velha,
esse mal-acordar noturno,
com as lembranças desgastadas, a saudade,
e as paredes vazias.
Não há retrato,
o fato diário nesta casa sou eu,
eu que já fui menino doente,
já fui menino solto, danado,
hoje, sou eu,
desiludido, descontente,
o filho mais novo que guarda
essa casa tão cheia de ontem
com peso da memória de todos,
o peso difícil da família,
o peso pungente e o sacrifício.

É meu esse tato,
esse cheiro,
esse mofo,
esse chão incorreto,
essa terra destruída,
onde não há fantasmas,
onde há pouco habitou,
pai, mãe, irmãos.

Não sei do jardim bonito,
dos coqueiros podados a cada seis meses.
O que me importa os cuidados da casa,
se já não há casa, nem acolhimento?
Não há frondosas árvores,
nem frutas colhidas,
nem aventuras nos pés, nos galhos.
Não há mais natais,
e suas luzes de cores,
só resta essa natureza morta,
a alma morta da casa.
Nos rangidos da porta,
nos gritos diurnos,
nos passos de gatos sorrateiros,
me escondo.

Não há onde ande por aqui,
e não esteja uma imagem, um mar, um rio.
Carregar este fardo é um desafio,
e o pior, me penhoro, me pioro,
pois só o mundo, talvez, abarque,
e eu abarco,
os resquícios e o pó dessa casa velha.