segunda-feira, 20 de abril de 2009

Domingo.

Pra que cultivar angústias de fim de semana,
- ser sexo numa sexta,
ser sábio num sábado -
e o domingo dominá-lo?

Um dia de fuga,
um dia de alegria,
três dias demais.

Domingo parece consumir a endorfina,
é aí que sentimos a falta dela,
essa felicidade em forma de hormônio.

Domingo parece querer engolir a vida
no final da noite, atrasado,
e num tardar, cravar a solidão
de um dia que sempre devora.

A Mão Complacente.

Talvez a vida, que é paixão e sonho
não seja selvagem e me compadeça.

Quem sabe então, eu solte dos ventos,
a mão complacente que me afaga a cabeça,
essa que pesa entre o carinho e a exigência.

Talvez a vida, medo medonho,
não seja um caminho, um fato isolado.

E aí me assole a doença,
e eu possa cantar, correr,
zangar meus olhos de devassa.

Mas pode ser que eu me perca.

Nessas três doses diárias,
nesses hotéis de subúrbio,
nesses letreiros luminosos,
com ar de calma, neblina e mistério.

Pode ser que a chuva,
encarnada de almas,
numa noite de asfalto molhado
e corações secos,
me ofereça um gole,
um trago, uma ação.

E a perdição da noite seja enfim materna,
sábia nos conselhos, exigente na volta,
a abarcar uma leva de homens mal-amados.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Jonas e Alguns Trocados.

Não tinha papéis.
Não tinha laços familiares.
Não tinha sequer documento,
muito menos um vale B
pra pegar aquele ônibus lotado de fim de noite,
e pedir, com a desculpa de algum tratamento médico,
um trocado pra comer qualquer coisa.
Comprar um pão, sei lá.

Não tinha planos futuros,
apenas planos imediatos,
não tinha sequer um lugar seguro pra dormir.
Pedia parada perto da favela V8.
Era ali onde morava,
entre dois barracos.
Sua vida sempre foi imprensada.

Mas o motorista não quis sair do lugar
enquanto Jonas não rodasse a catraca.
E Jonas tampouco desceria do ônibus
sem levar alguns trocados.
Estava decidido, embora dentro de si
tenha sentido, novamente,
a humilhação diária.
Eu vi nos seus olhos
o espaço da solidão resignada.
E ele não saiu dali.

Não tinha casa,
nem identidade,
não tinha filhos,
nem mulher.
Não tinha mais mãe.
Levava apenas duas caixas de remédio,
pra tentar justificar um tratamento
contra alguma doença venérea.
Achava nas latas de lixo
o resto da comida diária,
até que encontrou as caixinhas,
e decidiu ganhar a vida de outro jeito.

Não tinha mais dentes,
não tinha uma roupa decente
não tinha precauções quanto aos riscos da vida,
e tampouco tinha medo da morte.

Jonas, que foi preso uma vez logo aos dezoito,
sentiu o peso da falta de liberdade,
sentiu o descaso,
sentiu na pele, também,
a violência,
a negligência impudica do cárcere.
Decidiu não mais roubar.

No ônibus lotado da noite,
Jonas ainda esperava alguns trocados,
e o motorista esperava Jonas para dar partida.
Até que uma senhora lhe deu algumas moedas.
E Jonas esperou por mais.
Era preciso compensar a humilhação.
Eu vi nos seus olhos essa necessidade.
Nos olhos e na mão estendida que pedia.

Nessa hora Jonas não tinha mais receio,
pois também não tinha corpo,
não tinha mãos visíveis,
seus braços desapareciam.
E pra que Jonas sumisse de uma vez,
um senhorzinho mirrado,
com pressa e com fome também,
lhe deu um vale B
e disse com palavras secas:
"Passa logo a catraca,
ou desce,
que eu quero chegar
logo em casa."

Não tinha mais esperança,
não tinha brilho nos olhos,
não tinha força nos punhos
não tinha, sequer, uma resposta.
Então Jonas desceu,
com um vale B
e alguns trocados na mão.
Mas pensou que naquela noite,
não valia a pena nem comer,
pois sequer se sentia humano.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Mingau das Almas Matutinas.

Toma cuidado, menina.
Fecha essa porta que dá pra rua.
Lá atrás dos morros,
esses que tu vês
logo ali no horizonte,
não existe mais
meu carinho terreno.
São só aves noturnas
e soldados dissidentes
que passeiam atordoados
e ausentes.
Pura penúria.

Toma cuidado, menina.
Fecha os olhos
quando passar no beco
e no silêncio da noite
encontrar espectros,
e tremeres de suor
com a saliva
dos anjos
e das almas.
Seres restritos,
detritos de dor
e de sonhos mutilados.

Toma cuidado, menina.
Com o mingau das almas matutinas.
caladas de injúrias,
presas nas terras
a proferir palavras de apocalipse
em teus pesadelos medonhos.

Toma cuidado com os sonhos,
foge do medo do escuro,
dos barulhos soturnos da casa,
do combogó sinistro,
onde os gatos dormem
e fazem volúpias
à madrugada frágil.

Toma cuidado, menina,
pra que a música
não se torne tristonha
e não fiques pensando
que o mundo é sombrio
e que o quarto
vai amanhecer soterrado.
O medo só traz desgraça.

Toma cuidado, menina,
pra na calada da noite,
não perderes a inocência
e de manhã acordar impura
com os olhos do mundo,
e a excomunhão católica.

sábado, 4 de abril de 2009

Resposta a Bernardo Sampaio.

Bernardo,
Você corria solto e leve.
Você corria como um foguete,
ali pelos corredores,
a comemorar todas as notas dez que tirava.
Você andava solto, alegre,
e eu acompanha com prazer teus passos,
te vendo de um lado a outro,
a tomar os espaços do colégio,
a tomar meus olhos inteiros, e minha pele,
quando segurava minha mão.

Era assim que estavas comigo,
correndo pelos cantos,
gritando feito um menino bobo.
Parecia que ia subindo degraus,
conquistando um espaço
que eu, mesmo sem sentir,
pois nunca soube o que era aquilo,
lhe deixava entrar e me conhecer.

Não me custava te elogiar,
não me custava correr contigo,
nem brincar.
Eu sempre estive ali com prazer.
É o que chamam hoje de companheirismo.
Quis ser tua companheira em todo espaço.
E viajar ali, no chão da escola,
naquela escada espiral,
pular na piscina, virar peixe,
me esconder nos armários,
passar entre aquelas tantas crianças,
e perceber que eu começava a viver
algo que me diferenciava delas.
Elas iriam sentir isso depois.
As paredes não me detinham mais.

Nesses dias eu me estranhava:
Como aquela repulsa fundamentada durante anos,
essa repulsa que eu sentia por todos os meninos,
não conseguia mais se aplicar a ti.
Foi confuso perceber isso.
Você, ao mesmo tempo que era você, como os outros,
era diferente de todos, correndo solto pelos cantos
e conquistando os colegas, as professoras,
o chão de carpete, as árvores, a chuva...

Naquela varanda enorme da nossa escola,
que não era nada além de uma casa,
- por isso, talvez, ser tão nossa -
onde corríamos nos intervalos,
te vi tímido, vestido de matuto,
com aquele bigode,
temendo, visivelmente, o futuro próximo
que te levaria a dançar
com alguma das meninas.
E nossa sala era tão pequena,
apenas os dez alunos.
Você não tinha muito o que escolher.

Me dediquei a ti, Bernardo,
vendo nos teus olhos,
que prediziam um futuro bonito,
um espelho que também me refletia.
Eu, tão jovem, me sentia tua
e você era meu.


Mas talvez você não tenha entendido isso.
Talvez não fosse tua época.
Porque você era de Deus, dos bichos,
do mundo todo. E eu entendia isso.
Mesmo assim esperei teu carinho.
Esse carinho tardio
que agora sentes porque falta.

Nossos dias eram tão lindos,
nossas manhãs preguiçosas.
Ali, na nossa segunda casa,
entre os corredores e as bancas,
entre as salas e a cozinha,
eu te entreguei meus cômodos.
Inerte e besta com teus passos,
teu talento, teus olhares furtivos,
tua felicidade.

Os dias são outros, Bernardo.
Nosso sol já não bate como na infância.
O tempo nos rege diferente
e ensina uma outra matemática severa,
de anos que passam como dias,
e semanas inteiras de amores tristes.
E embora o passado pareça um sonho,
desses que nem sabemos se aconteceu,
te admiro ainda hoje como antes.
E vejo ainda nos teus olhos
esse caminho, essas trilhas
que provavelmente vão te levar
pra um lugar bonito.

Afinal, foi contigo, Bernardo,
que eu esqueci essa meninice boa,
esses pormenores da infância,
e aprendi a amar.
Segue como tens de seguir.
E o tempo nos falará melhor o que virá.

Diana.