terça-feira, 27 de outubro de 2009

Conta.

Há começo
e angústia
no início do ódio
há um lugar perto
da ponta do precipício
há a mão
que esmurra irritada
o prato que voa
Há, além do mais
a conta,
o troco,
o garçom,
os 10%.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Horóscopo.

Sorte no horror
azar na ioga.

Sorte na fé
azar nos pés.

Sorte no chão
azar no céu.

Sorte na neblina
azar na motanha.

Sorte nos filmes
azar na composição.

Sorte nos erros
azar na perversidade.

Sorte no texto
azar no sexo.

Sorte no tempo
azar no relógio.

Sorte no roubo
azar na fuga.

Sorte no contra-cheque
azar no cartão de crédito.

Sorte na academia
azar no asfalto.

Sorte na afeição
azar no afeto.

Sorte na paz
azar nos passos.

Sorte na penha
azar à venda.

Sorte na escolha
azar na sorte.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Maré Morta.

O que seria do mar,
se a cada mês
a maré não morresse?
Pra não deixá-lo revolto
com a angustiante saudade
das águas que partem
à lua nova.

E o que seria do mar, então,
se o traiçoeiro horizonte
não abrigasse, sempre,
a falsa esperança de se chegar?

O que seria do mar, enfim,
se o seu rebento na rocha,
não fosse a pancada pra lhe retirar
de um profundo luto de maré morta?

É pra desanuviar os sonhos,
depertados pela lua,
que o mar parte em aventura
pra desembarcar em outras praias,
enquanto aqui,
acalma o silêncio
na maré baixa.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A Triste História dos Dois Irmãos Beatos.

Mais um astuto infame gosto
dessa esclerose de sonhos.
Parece que Lívia aperta seu cinto,
Parece que Lauro aperta a gravata.
Todos se enforcam
todo santo dia.
Inconsequente rotina.

Na sala alguns morreram,
a maioria de tédio,
o resto, remorso e dor.
No quintal outros jazem
calados.

Foram às casas,
se escondendo aos montes,
túmulo sobre túmulo,
rebelados pela desventura,
rebelados pelo choque.

Agora jaz o intelecto.
Cada corpo, um mortuário.
Cada mente, um cemitério.

Calaram, ambos, os desafetos.
Lívia e Lauro são santos agora,
nomeados como irmãos.
Mal sabem os dois do seu destino,
Santos das Causas Infelizes.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Palavra Pontual.

Vá depois,
seus olhos, seu carinho,
sua viagem torta,
e os anos que passam
sem que você perceba.
Tudo pode esperar.

Vá depois,
sem me levar junto
sem remover o pó velho
de cima dos móveis,
nem me deixar cair imóvel
como a casa que habitas.

Vá depois,
seus sonhos, suas metas
seu terno de linho,
seu traje esportivo,
seu penteado
e o dinheiro do dia.
Tudo pode esperar.

Vá depois,
mas sem me levar
sem me tomar os órgãos,
nem me afagar as mãos
na despedida.

Vá depois,
que eu colho,
que eu arrumo,
que eu teço,
que eu lavo.
Vá depois,
que eu imploro.

Vá depois,
não sem antes me dizer
onde estão meus livros,
onde deixei um ou outro sapato,
onde guardei lembranças,
onde perdi minha pele.

Vá depois,
e aí recolha o vestido com calma,
dobre bem a camiseta
e reflita como queira
sobre o que te espera
e sobre o que farás.
Não tenha pressa.

Vá depois,
pra depositar tua ansiedade
que não tem idéia de amanhã,
pra depositar esperanças
onde esperas que há.

Vá depois,
seu orgulho, seu medo,
seu saco de pão,
sua coleção de vazio,
seu canto de quarto,
seu armário oco.
Isso pode esperar.

Vá depois,
e me olhe agora
tal como sou,
num sussurro.
Pois agora tudo espera imóvel,
toda a mobília e os insetos da casa,
a nos olhar de relance,
a aguardar minha palavra,
desejosa de falar qualquer coisa
que não te faça ir mais nunca.

sábado, 13 de junho de 2009

Um Vazamento.

Goteja,
como tortura
o ar tão preso
sustenta o peso
da clausura.

Goteja,
como água suja
idílio de desgosto,
demasiado tarde
a navegar na lama.

Que seja!
Infame como o futuro
suspiro o ar tão fraco
alarde o vento parco
imperial, impuro.

Goteja,
a quem deseja gotejar
o arrulhar dos pombos,
tua face assim, doente
o olhar frio que lamenta.

Goteja,
como ciúme
o mar desfaz então
a onda desponta,
alinha o barco no infinito.

Que seja!
No mar aflito
as mágoas não têm altura,
sustentam o peso da clausura
no ritual mítico da praia.

Goteja,
gorjetas,
pra eu enriquecer,
as gotas me esgotam,
a gorjetear.

Para que?
Para que, então, gotejar?
E no fim não ser,
Dia a dia,
gota a gota?

terça-feira, 9 de junho de 2009

Poesia Urbana III (Ao Soar o Dia).

Conduta
maldita
de quem
anda
se mal findou
a meia-noite,
se ainda
falta o ar
à madrugada
pra expulsar
do horizonte
o teimoso sol
e aquele
sono poente.

Atrás de um
vão dois
e três
e mais
a andar
às quatro
antes mesmo
das cinco
a circular
no calçadão
ainda frio
de uma frívola
noite vagabunda,
sombras fortuitas
ao mar
no marulhar
de ondas,
na neblina
de sol
nascente,
película
insegura
sobre a onda
que segura
esse caminhar.

Os passos
a perdoar
o dia anterior
as penas,
a pedir futuro,
pensando
a cada passada
como cada onda
reflete
o percurso,
a caminhada
matinal dos dias
a matar o ócio,
mortificar
os ossos
na acidez
da maré
que bate
aos pés.

Perdulárias
pontes
a separar
os restos
do café-da-manhã
e o resto
do mundo,
pendurado
à sede
da rotina,
tardia,
tacanha,
sacal,
a saculejar
diários diabos
no sufoco
dos coletivos,
carros fúnebres,
a coletar cada
alma que passa,
passageira,
ao soar o dia,
num suor
que seca
sempre
a seiva
do imaginário
que,
ao menos antes,
pôde comungar
com a praia.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Adocicado.

O tempo me soará
tua sombra me sugará
mas quem vai açucarar
os meus dias?

A Partida.

Ele parecia ter rompido o segredo,
destruiu as tulipas, os pratos, as taças.
Abandonou o segredo junto com a casa.
E parecia ter partido.

Ele parecia revolto
com palavras breves
com gritos fortes,
a madeira absorvia na parede,
os vizinhos resvalavam na porta
esperando ouvir algo.

Ele parecia ter rompido o segredo,
as palavras de amante, o sexo,
a soma de prazeres,
mentiras sujas,
roupas sujas
e parecia partir,
com aqueles olhos na cara,
a selva enigmática de sonhos
de sutilezas e de segredos rompidos.

Não sei se era desgosto,
desfez as mágoas no líquido,
assombrou papéis,
desfigurou a porta,
e transpassou meu peito roto,
rompendo planos, poemas,
me pondo só.

Ele parecia quieto,
em outrora solto,
mas pisava em ovos.
Minha palavra nada valia
para que o prendesse.

Ele parecia haver rompido o segredo,
o segredo do pólen, das frutas,
o segredo do sangue,
do abismo, dos santos,
das putas, do hímen,
da fálacia, do fálico,
da felação impura, ardente.
Aquele segredo de amantes.

Não sei se era o futuro
amedrontando seus olhos,
a casa correta,
a linha correta,
a pureza pútrida
da putaria da vida.
Que raiva eu senti
da normalidade,
que raiva eu nutri
do resto.

Ele parecia haver rompido tudo
e partia.
Partia dos meus olhos,
dos cômodos comprados pra cada
canto do apartamento.
Partia meu rosto,
na ferida de apenas romper
a casa partida.

No assoalho de tacos,
nos tapetes, nos lustres,
nos vitrais do armário,
nas bebidas quentes,
no abajour do quarto,
nos livros da estante,
na mesa de centro
onde jantamos
e nos comemos.
Tudo ali era resto,
ele parecia haver partido.

Ele parecia haver rompido o segredo
o segredo das noites,
o segredo das portas,
o segredo dos pratos,
mas os cacos da louça
nem sequer esperaram o lixo,
pois agora ele voltava,
irrompia na sala
pra me romper mais ainda,
com a delicadeza dos passos,
com a finura da boca,
com aqueles olhos que me diziam
que tudo era mais simples na vida
se o seu lugar fosse ali.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A Menina dos Olhos Deturpados.

No relógio do vento
via as horas passar na copa das árvores,
no jardim de casa
via a terra viver com seus pequenos bichos,

Via cada detalhe de tudo,
os sons esquecidos por todos,
o faro despercebido,
com um tato faminto de criança.

A menina no jardim
via os pingos sobre o óleo da seiva,
os galhos retorcidos
da goiabeira,
os sonhos detidos entre as folhas.

Criava no jardim a sua horta,
plantando futuro,
e colhendo lembranças.

A menina entretida
percebia os olhares cegos
no canto da porta,
os passos dos gatos,
os uivos noturnos.
Cada fresta de corpo,
cada cheiro novo,
o preparo dos doces,
a mesa ao jantar,
e a fumaça do café
sob o frio úmido
daquele inverno.

A menina dos olhos abertos
a enxergar cada problema entre irmãos,
cada discórdia, cada vingança
e cada doença venérea.

A menina isolada,
que ao ver um simples garoto,
de um amor pequeno e bobo,
não viu mais nada adiante,
com os olhos detupardos de frio
e de calor ao mesmo tempo,
e sem entender direito
por que aquela vista,
tão acostumada a observar tudo,
reagia com um receio novo
àquela tão frágil descoberta.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Longe de Casa.

Lá longe,
numa casa isolada
num campo aberto
coberto de verde
e de ventania.

Lá longe
nas nuvens altas
aquela viagem,
as horas do dia
a divagar desejos
de não se entregar a si
e se tornar andarilho
de um mundo
que não é esse.

Lá longe
suavizando os sentidos
na sensação da brisa
a tatear as águas
a escutar o arrulhar
das pequenas aves,
onde só o alvoroço
dos ventos
é o alvoroço da vida.

Lá longe
nas nuvens soltas
num céu de quilômetros,
naquela árvore isolada
num topo de colina
e as pessoas estranhas
rostos sadios a viver
num espaço qualquer
na areia da praia
acima das rochas
acima de tudo
e o barulho de nada.

Lá longe
de mim,
lá longe
de casa.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Por Pouco.

Por que tão caótico
o terror de terminar
se teus ouvidos
eram somente
aluguel de minhas injúrias?

Pra quê penar por ti,
nesse medo de se dar,
se temer foi impedir
o que mal começamos?

Por existir e estar
propenso a viver,
suspenso no ar,
suplantei meu mal
pra falar a mais,
pra talvez cobrir
o que falavas de menos.

Por repetir
todas as frases que quis
e olhar teu vício latente
ora contente a refletir
o que te dizia,
ora inseguro com os desejos
e sentidos que eu declarava.

Por suportar o se
e suar num porém,
sacrificamos o que é
e o que possível seria,
num detrito de dúvida
a duvidar da liberdade
indulgente dos dias.

Pra quê fazer disso um tanto,
se um reles envolvimento
demandaria bem menos
e nos daria bem mais?

Pena, então,
perceber
que existir e ser
apenas,
nunca será
o suficiente.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Domingo.

Pra que cultivar angústias de fim de semana,
- ser sexo numa sexta,
ser sábio num sábado -
e o domingo dominá-lo?

Um dia de fuga,
um dia de alegria,
três dias demais.

Domingo parece consumir a endorfina,
é aí que sentimos a falta dela,
essa felicidade em forma de hormônio.

Domingo parece querer engolir a vida
no final da noite, atrasado,
e num tardar, cravar a solidão
de um dia que sempre devora.

A Mão Complacente.

Talvez a vida, que é paixão e sonho
não seja selvagem e me compadeça.

Quem sabe então, eu solte dos ventos,
a mão complacente que me afaga a cabeça,
essa que pesa entre o carinho e a exigência.

Talvez a vida, medo medonho,
não seja um caminho, um fato isolado.

E aí me assole a doença,
e eu possa cantar, correr,
zangar meus olhos de devassa.

Mas pode ser que eu me perca.

Nessas três doses diárias,
nesses hotéis de subúrbio,
nesses letreiros luminosos,
com ar de calma, neblina e mistério.

Pode ser que a chuva,
encarnada de almas,
numa noite de asfalto molhado
e corações secos,
me ofereça um gole,
um trago, uma ação.

E a perdição da noite seja enfim materna,
sábia nos conselhos, exigente na volta,
a abarcar uma leva de homens mal-amados.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Jonas e Alguns Trocados.

Não tinha papéis.
Não tinha laços familiares.
Não tinha sequer documento,
muito menos um vale B
pra pegar aquele ônibus lotado de fim de noite,
e pedir, com a desculpa de algum tratamento médico,
um trocado pra comer qualquer coisa.
Comprar um pão, sei lá.

Não tinha planos futuros,
apenas planos imediatos,
não tinha sequer um lugar seguro pra dormir.
Pedia parada perto da favela V8.
Era ali onde morava,
entre dois barracos.
Sua vida sempre foi imprensada.

Mas o motorista não quis sair do lugar
enquanto Jonas não rodasse a catraca.
E Jonas tampouco desceria do ônibus
sem levar alguns trocados.
Estava decidido, embora dentro de si
tenha sentido, novamente,
a humilhação diária.
Eu vi nos seus olhos
o espaço da solidão resignada.
E ele não saiu dali.

Não tinha casa,
nem identidade,
não tinha filhos,
nem mulher.
Não tinha mais mãe.
Levava apenas duas caixas de remédio,
pra tentar justificar um tratamento
contra alguma doença venérea.
Achava nas latas de lixo
o resto da comida diária,
até que encontrou as caixinhas,
e decidiu ganhar a vida de outro jeito.

Não tinha mais dentes,
não tinha uma roupa decente
não tinha precauções quanto aos riscos da vida,
e tampouco tinha medo da morte.

Jonas, que foi preso uma vez logo aos dezoito,
sentiu o peso da falta de liberdade,
sentiu o descaso,
sentiu na pele, também,
a violência,
a negligência impudica do cárcere.
Decidiu não mais roubar.

No ônibus lotado da noite,
Jonas ainda esperava alguns trocados,
e o motorista esperava Jonas para dar partida.
Até que uma senhora lhe deu algumas moedas.
E Jonas esperou por mais.
Era preciso compensar a humilhação.
Eu vi nos seus olhos essa necessidade.
Nos olhos e na mão estendida que pedia.

Nessa hora Jonas não tinha mais receio,
pois também não tinha corpo,
não tinha mãos visíveis,
seus braços desapareciam.
E pra que Jonas sumisse de uma vez,
um senhorzinho mirrado,
com pressa e com fome também,
lhe deu um vale B
e disse com palavras secas:
"Passa logo a catraca,
ou desce,
que eu quero chegar
logo em casa."

Não tinha mais esperança,
não tinha brilho nos olhos,
não tinha força nos punhos
não tinha, sequer, uma resposta.
Então Jonas desceu,
com um vale B
e alguns trocados na mão.
Mas pensou que naquela noite,
não valia a pena nem comer,
pois sequer se sentia humano.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Mingau das Almas Matutinas.

Toma cuidado, menina.
Fecha essa porta que dá pra rua.
Lá atrás dos morros,
esses que tu vês
logo ali no horizonte,
não existe mais
meu carinho terreno.
São só aves noturnas
e soldados dissidentes
que passeiam atordoados
e ausentes.
Pura penúria.

Toma cuidado, menina.
Fecha os olhos
quando passar no beco
e no silêncio da noite
encontrar espectros,
e tremeres de suor
com a saliva
dos anjos
e das almas.
Seres restritos,
detritos de dor
e de sonhos mutilados.

Toma cuidado, menina.
Com o mingau das almas matutinas.
caladas de injúrias,
presas nas terras
a proferir palavras de apocalipse
em teus pesadelos medonhos.

Toma cuidado com os sonhos,
foge do medo do escuro,
dos barulhos soturnos da casa,
do combogó sinistro,
onde os gatos dormem
e fazem volúpias
à madrugada frágil.

Toma cuidado, menina,
pra que a música
não se torne tristonha
e não fiques pensando
que o mundo é sombrio
e que o quarto
vai amanhecer soterrado.
O medo só traz desgraça.

Toma cuidado, menina,
pra na calada da noite,
não perderes a inocência
e de manhã acordar impura
com os olhos do mundo,
e a excomunhão católica.

sábado, 4 de abril de 2009

Resposta a Bernardo Sampaio.

Bernardo,
Você corria solto e leve.
Você corria como um foguete,
ali pelos corredores,
a comemorar todas as notas dez que tirava.
Você andava solto, alegre,
e eu acompanha com prazer teus passos,
te vendo de um lado a outro,
a tomar os espaços do colégio,
a tomar meus olhos inteiros, e minha pele,
quando segurava minha mão.

Era assim que estavas comigo,
correndo pelos cantos,
gritando feito um menino bobo.
Parecia que ia subindo degraus,
conquistando um espaço
que eu, mesmo sem sentir,
pois nunca soube o que era aquilo,
lhe deixava entrar e me conhecer.

Não me custava te elogiar,
não me custava correr contigo,
nem brincar.
Eu sempre estive ali com prazer.
É o que chamam hoje de companheirismo.
Quis ser tua companheira em todo espaço.
E viajar ali, no chão da escola,
naquela escada espiral,
pular na piscina, virar peixe,
me esconder nos armários,
passar entre aquelas tantas crianças,
e perceber que eu começava a viver
algo que me diferenciava delas.
Elas iriam sentir isso depois.
As paredes não me detinham mais.

Nesses dias eu me estranhava:
Como aquela repulsa fundamentada durante anos,
essa repulsa que eu sentia por todos os meninos,
não conseguia mais se aplicar a ti.
Foi confuso perceber isso.
Você, ao mesmo tempo que era você, como os outros,
era diferente de todos, correndo solto pelos cantos
e conquistando os colegas, as professoras,
o chão de carpete, as árvores, a chuva...

Naquela varanda enorme da nossa escola,
que não era nada além de uma casa,
- por isso, talvez, ser tão nossa -
onde corríamos nos intervalos,
te vi tímido, vestido de matuto,
com aquele bigode,
temendo, visivelmente, o futuro próximo
que te levaria a dançar
com alguma das meninas.
E nossa sala era tão pequena,
apenas os dez alunos.
Você não tinha muito o que escolher.

Me dediquei a ti, Bernardo,
vendo nos teus olhos,
que prediziam um futuro bonito,
um espelho que também me refletia.
Eu, tão jovem, me sentia tua
e você era meu.


Mas talvez você não tenha entendido isso.
Talvez não fosse tua época.
Porque você era de Deus, dos bichos,
do mundo todo. E eu entendia isso.
Mesmo assim esperei teu carinho.
Esse carinho tardio
que agora sentes porque falta.

Nossos dias eram tão lindos,
nossas manhãs preguiçosas.
Ali, na nossa segunda casa,
entre os corredores e as bancas,
entre as salas e a cozinha,
eu te entreguei meus cômodos.
Inerte e besta com teus passos,
teu talento, teus olhares furtivos,
tua felicidade.

Os dias são outros, Bernardo.
Nosso sol já não bate como na infância.
O tempo nos rege diferente
e ensina uma outra matemática severa,
de anos que passam como dias,
e semanas inteiras de amores tristes.
E embora o passado pareça um sonho,
desses que nem sabemos se aconteceu,
te admiro ainda hoje como antes.
E vejo ainda nos teus olhos
esse caminho, essas trilhas
que provavelmente vão te levar
pra um lugar bonito.

Afinal, foi contigo, Bernardo,
que eu esqueci essa meninice boa,
esses pormenores da infância,
e aprendi a amar.
Segue como tens de seguir.
E o tempo nos falará melhor o que virá.

Diana.

terça-feira, 31 de março de 2009

A Inocente Carta à Diana Castro.

Diana,
você que elogiou o palhaço que desenhei no quadro-negro
e elegeu meus traços o melhor de todos.
Você que dividia as manhãs comigo,
estudando aquelas tarefinhas de matemática
nessa pequena escola de subúrbio brasileiro
e dividia os tazos na hora do recreio.

Diana,
você tão paciente a me olhar nos olhos,
a ver, talvez, ali, que havia algo entre nós.
Eu fui estúpido, Diana.
Mas compreenda,
eu tinha apenas dez anos
e você mesma sabe que nessa idade
as meninas são mais sábias.

Eu era um pouco tapado, Diana.
Não percebi nem sequer teu ciúme por Érica.
Mas era dela que eu pensei ter gostado,
mesmo sendo você minha companheira de exercícios,
minha brincadeira nos parques, meus elogios.
Eu gostava insanamente de Érica,
daqueles cabelos dourados
e aquele jeito de levantar as duas mãos
pra perguntar algo a professora.
Gostava tão estupidamente,
que nunca havia falado com ela,
não troquei nenhuma palavra,
até o dia em que ela me mandou sair de baixo
do birô da professora Flávia.

Mas isso faz tempo, Diana.
Nós éramos segunda-série.
Eu não entendia muita coisa da vida,
e os sonhos eram tão vastos
que eu só te descobri agora.

Vamos brincar, Diana.
Agora eu vejo esses teus olhinhos castanhos
e esse rosto bonito de ciúme.
Eu sou tão inocente de tudo, pois sei que só
irei aprender contigo durante esses dias que nos restam.

Eu vi que teu amor perpassa as carteiras da classe,
não se limita a esses muros de colégio,
aos parquinhos de areia e escorrego.
Prometo abdicar às brincadeiras medíocres
que insisto em me meter com os outros meninos.
Agora eu sou doce pra ti, Diana.
Já não faz parte do agora meu conjunto do lego
e aqueles bonecos inertes do comandos em ação.

Eu quero ver teu sorriso todos os dias,
e ir além da hora da saída,
porque quando você vai
o meu coração também parte
junto com a van escolar.
Todos aqueles meninos, Diana,
já não valem mais tanto quanto teu sorriso.
Ramon foi só alguém que emocionalmente te abalou,
porque sempre fui eu que estive aí, junto de ti.
Eu quero meu lugar de volta.
Eu quero dividir meu lanche,
essas maçãs que minha mãe insiste em colocar na lancheira.

Eu sou grato a ti, Diana.
E ao que vivemos juntos.
Só enxergo você,
nos meus próximos passos
e no meu caminho.

Com carinho: Bernardo.

Poesia Caótica e Autobiográfica.

Não sou ser somente pálido,
criado no berço materno
pra ter medo da rua
pra temer a noite.

Não sou ser somente tímido,
que divaga no vão dos pensamentos,
a intimidar pretextos sós e melancólicos,
diálogos de dias cerrados,
travados nos sonhos, nas nuvens,
criando afagos, amores,
a condenar a própria mente.

Não sou ser somente sólido,
de pele e osso simplesmente
a sorver emoções vagas
e a travar a luta dos tempos.

Não sou tão assim polido,
pudico de possibilidades,
pungente de pretensões
na passagem perdida dos instantes.
Cáustico, caótico e enigmático
a aspirar poesias de pouco valor,
aspirante a aspirador,
tentando pensar,
tentando enxergar além do mar.

Palavras Aleatórias de um Minidicionário da Língua Portuguesa.

Heterônimo corrente.
Sônico movediço.
Desaprovar atirado
sobrepujante higiênico.
Costura balão setecentista,
desgarrar rolo, precaução.
Tonitroar, falir.
Negativo caiapó assemelhar.
Sub fulgor ritmado imo,
charqueador ornato.
Apostemar neuropatologia.
Escandir pontificado.
Imperiosidade tramontar.
Criador.
Superego.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Naufragar.

A naufragar poesias
a fragata do mar
segue, à manhã fria,
a fragilizar versos
a favor do vento.

A força do mar
- e o mar vicia -
é avistar tais versos
em poesia e afundar
tristezas no horizonte.

A afogar silêncios,
fortuitos dias,
as fortes frotas
navios, fragatas,
em forma de estrofe
com o vento, vão.
Solidão de volta.

A fazer fortunas
e viajar às brumas
sem se ver além,
através de espumas
desse mar revolto,
navegar a solto
sem toar o barco.

A naufragar as rimas
e enfrentar os riscos,
à calmaria, flutuar ao mar
frente a neblina e fingir
conquistas a alcançar.

Além da vista o vento
segue à sua curva, alado,
a um longínquo horizonte,
à maré fria, sem afastar
o foco, medo do fracasso.

Lamento de Amor Submisso.

Meu passo é ele,
meu relógio, meu tempo
e o passar das horas.
É ele quem espero
antes de anoitecer
e teço, calada, o nosso sonho,
vestindo as paredes da casa
e aquela cama vazia.

É por ele que me desfaço
e disfarço o rubor da face
quando sorrio docemente,
ao ver seus olhos apertados
olharem firme os meus
num dia qualquer,
numa semana qualquer.
Pouco importa o tempo.

Meu passo é ele,
meu ritmo,
assim como andam ritmados
os ponteiros que fazem os dias.
Meu marcador das horas,
esperando a sua volta
desde que a porta bate.
É ele quem me toma aos braços,
quando chega,
e me faz flutuar
até o quarto.
É ele quem recebo,
sem nunca cansar
o prazer de recebê-lo.

É nele que penso,
não há mais quem eu pense tanto
nem inspiração maior,
porque meu passo é ele.
Juntos somos carnaval
somos noite, festa
e faço assim meu disfarce
como se fosse submissa,
deixando de lado as roupas
pondo meus pés no chão
e os olhos lá no céu
onde, provavelmente,
a alma dele fica
quando nossos corpos voam.

É por ele que faço
a alegria dos dias,
sabendo mentir e fingir o meu sono
quando na verdade sou eu
que velo pelo sono dele,
sabendo mentir e fingir as tristezas
pra, quem sabe, negar
essa nossa existência,
suor de rotina e de tempo,
e assim fazer dos dias
uma entrega feliz,
sem medo de sonho.

Meu passo é ele,
meu corpo,
meu suor,
talvez o sangue que corre
e esse meu calor.
Com sua mão a moldar
e o meu sopro de vida
nascer, como uma muda,
desaguando meu choro
como a água da chuva
a salivar uma seiva noturna
como uma lágrima.

Meu passo é ele,
meu tempo,
meu espaço.
Mal sabe ele,
no entanto,
que eu também
sou o seu passo.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Mensagem.

Mãos e mímica.
Metas e meios.
Roma e ramo.
Morte e malassombro.

Mãe e monotonia.
Medo e metonímia.
Rumo e rima.
Manhã e madrugada.

Não sei por quê,
mas tudo hoje
me pareceu
meio mórbido.

Amor Igual.

O que importa a nós
se os nossos sexos são iguais?
O nosso corpo é tão somente porta-voz
de um amor absoluto
suave e destemido
que nasce sem sabermos
e não sabe o que carregamos.

O que importa a nós
se as nossas vozes, tão iguais,
carregam o rigor dos rostos?
Nesse teu rosto, além de olhares,
só encontro afeto
na minúcia dos poros
e na cor desses olhos em que me vejo.

O que importa a nós,
se aqui, à sós,
longe dos olhos que te reprimem,
somos seres completos?
Se embaixo desse teto
só eu te vejo nu.
Aqui, sinto o mesmo que lá fora.

O que importa, agora
se não nós
e o que sentimos?

Não teme a mim,
portanto,
se deter-me
é mentir
a teus sentimentos.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Corpo/Carnaval (Reencontro).

Que alcoólico!
Não pensei em refutar aqueles braços
que cheiravam a carnaval.
Seu corpo estava em festa.

Ali, naquela baixa luz
onde tudo era baixo,
dançando sem pudor
até quando puder.

Parecia haver nela
tamanha paixão e loucura.
Seu corpo se agitava,
e nós descíamos a ladeira.

Mas por que ainda há
em mim essa imagem,
se seu corpo era só vertigem?

Por que sua boca ainda
parece impressa aos lábios,
assim como uma prece à cabeça?

Por que toda aquela pressa
de me amar,
e me tornar imenso?

Nos seus braços e nas mãos,
enlaçado aos meus pés,
um calor de céu
a não sei quantos graus.

Nos seus olhos tenebrosos
havia um tempo acumulado
de quem já havia me esperado
de algum outro carnaval.

Talvez essa fosse
a sua angústia.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Poesia Urbana II (Ao Cair a Tarde).

Ao jantar,
com jeito
de quem quer
comer,
sem jeito,
pois não há
o que
encontrar
só pedir
de fome.

Julga
mais
tarde
que há
solução
joga
os trapos
ao mar,
se junta
a jangada
que parte
atravessando
a ponte
por sobre
o rio
que dilata.
É onde
o barco
atola,
é onde
estou lá?

A lama
lota
e o calor
esgota
o suor
que espalha
o pêlo
da púbis.

Já caindo
de sol
na ponte,
ao horizonte
poente,
o menino
pede
pois pedir
pouco
é pouco
pior
que roubar.

Passa ali
pelo cais
ao cair
da tarde,
troca
o trocado
por três
notas
de dois.
Tenta
faturar
mais,
antes
de voltar.

Passeia
de brisa
ao mar
quando
o espaço
não há
no ônibus,
pois a solução
é surfar
pra chegar
quem sabe
vivo
na virulenta
casa
de subúrbio
e barro.

Mas
pra quê chegar,
se já
não há
certeza
bem como
não há
sorte?

No fim
da noite
com o fio
da fome
pede
a quem vê
e anda
ante
a ponte,
pára
no parapeito,
e pula
mas somente
pra se distrair
na água
suja do rio.

Poesia Urbana I (Ao Ladrar a Noite).

Nota
ao anoitecer
o dia latir
como quem ladra
ao leo.

Nota
o enxame
o reclame
a saúva
que toma conta
da noite.

Nota
o agouro
que baixa
a demandar a angústia
dos que penam
no escuro.

Nota
a juventude
idiota que cai
na rua
a tocar alto
um trote
noturno
de notas
mortas
aos tímpanos.

Nota
a libido das ruas
o erotismo das calles
e as caladas
putas
da Conselheiro.

Nota
a putrefação
do cheiro
das pontes
a inalar
o suor
o lixo
e a urina
do povo.

Nota
a popular
noite
o espectro
que paira
por sobre
casarões velhos
casebres
pensões.

Nota
além da ponte
e enxerga
pra ver além
do passeio
através
do painel
do carro
o pedinte
a pedir um trocado
limpando
o parabrisa.

Nota
às vezes
esse silêncio
que corta
a veia
fúnebre
da cidade
e fica eternizado
em cada ponto
onde dorme
um pivete,
um pirralho.

Nota
nesse passeio noturno
pra aguçar
o tato
pra provocar
o palato,
o cheiro
da fábrica da Pilar
abre as portas
do carro
pra respirar
a cidade
sem se importar
com o assalto
nem temer
o diurno
nem a fome
que outros sentem
por ali.

Nota
ao anoitecer
o dia latir
e a cidade
uivar sem voz
quando o sol
se vai.