quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O Sono de Berenice (ou O Choro da Noite).

Com o choro da noite ela dormiu,
assim como pássaros à meia-noite
assim como o mundo, que também dorme,
assim como a vida cheia de conselhos, de erros.

O choro da noite era um sussurro triste,
uma menina calada, inconsciente,
cansada dos arroubos da mãe,
e das frases mal-ditas do pai.

Ela continha uma ânsia de loucos,
um pranto de plantas à meia-noite,
uma suave dureza de sonhos,
um sono leve como um abrigo comprometido.

Mas com esse choro da noite ela dormiu,
assim como os cães,
- que mínguam melancólicos na madrugada -
assim como o descanso dos cegos
- que projetam fatos no seu olhar,
como na tela branca de um cinema mudo.

Na cama, essa menina pequena,
passava seus olhos sobre as roupas do cabide
e imaginava um homem soturno e sério,
altivo em seu magistral chapéu de palha
e num sobretudo surrado e negro.

Dormia guardada essa menina
com o choro da noite à sua vigília,
no escuro do quarto adormecida,
mesmo chorosa, insegura, pequena.

Era, talvez, o escuro que lhe assegurava
o sono, o sonho, o sentimento diurno.
Era, talvez, o escuro que lhe assustava,
nessa casa grande de ecos, de olhos selvagens,
de gatos sorrateiros nos telhados,
nas soleiras, nas portas e combogós.

Acolhia seu sono de respiro pausado
na cama, entre fronhas, lençóis,
e uma boneca de pano amassada
enlaçada nos braços, nas suas lembranças
e memórias ainda tão novas.

O choro da noite tinha um mistério de mar de madrugada,
de águas noturnas, soturnas, paradas,
de águas ausentes, um desejo de medo
ao se banhar sem luz,
num céu de nuvens distantes, ralas, fogosas,
e uma lua fraca, um vento velho,
naquela solidão íngreme da noite,
balançando as palhas de um quiosque
e os cabelos da menina no quarto.

Aquele vento de segredo, de sussurro,
que vinha do temor da beira da praia,
era ele que, zeloso,
trazia de lá o choro da noite,
pra acalentar o sono tranquilo da menina
e cessar o pranto ao tocar seus cílios.

O choro da noite,
aquele acervo cruel de pura intensidade,
era ele que engolia a própria noite,
quem sabe o dia, a tarde, o mundo
e toda aquela dinâmica do mar e do amor.

O choro da noite era aquele som distante
de desabafar a dor no travesseiro,
de desabafar o ódio mordendo os dentes.

Mas esse choro suave, noturno,
engolia os sonhos maus que a menina temia antes de dormir
e o medo daquela escuridão ficava retido nos jardins da casa
nos galhos da goiabeira,
nas minúsculas folhas do flamboyant,
na altura sisuda, e protetora, dos coqueiros.
As formigas também retinham esse medo em suas patas
e o enterravam ao redor dos problemas sérios,
à sombra da noite, nessa brisa suave de mistério.

A noite soprava aquele frio de Julho
e os lençóis se lançavam a flutuar com os brinquedos da menina.
O sono suave, intangível, melancólico e azul da pequena,
que imaginava outros tantos jogos pro dia seguinte
não parou de recontar os minutos de um dia que foi século.

Aquele canto da noite fazia adormecer os objetos
e sorvia no pranto dos outros o mal de todo mundo,
pra que tudo no quarto dormisse bem,
pra que o dia, ainda assim, acordasse belo e preguiçoso,
com os olhos ressacados de quem chorou a noite toda.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Cavaleiro.

No subúrbio
do urbano,
à margem do mundo humano,
pessoas.

No complexo
diário urbano.
Na beirada do sonho,
e da linha férrea,
humanos.

Lá no suburbano,
onde parece que pulsa mais intensa a vida
e onde a felicidade repulsa a tristeza,
tem feira de grito, tem apito, buzina,
tem a menina que chora pedindo um brinquedo simples,
tem gente que trabalha nessa badalar da vida
e aviva mais o sentimento da luta.

Mas na ida e na vinda do trem,
tem quem passe por baixo dos trilhos
e vacile.

Talvez na descida da estação,
no corre-corre pra ver quem chega primeiro,
tenha se desvencilhado,
- trem que há descarrilhado -
de uma linha, de uma mão perdida.

João mesmo
se cansou de ser nada
e só levar revés.
Ao invés de viver lamentando
se jogou perto das três
no meio da linha do trem,
depois de fumar dois cigarros
e cheirar um pouco de cola.

É delírio, é delírio.

Já Hugo tenta mudar a vida,
na escola, na música,
no sonho.
A realidade não dificulta o desejo,
pois se espelha no trilho de vida
de quem já pegou o trem.

No subúrbio,
que não é sub-humano,
é mais humano ainda,
tem espaço pra tudo,
gente tristonha, feliz,
alguns trabalham na feira,
na areia, poeira, barulho,
vendendo melancolias,
sapatos, baldes e ferros,
comidas diversas e frutas.

Há os que fogem, os que fingem,
onde os olhos saltam do lugar
e vão parar longe,
mas há também aqueles que vêem tudo passar
e ficam.
A vida se vai assim, junto a essa troca,
junto a esse trem, a esse tudo,
mas a alguns ela nem afeta.

É nesse subúrbio,
de histórias pequenas como uma alma nobre,
de sonhos simples e singelos,
assim como as ruas e o caminhar de todos,
que o sol guarda na silhueta das casas ao longe
a alegria do dia e medo da noite que vai embora,
logo depois de amanhecer de novo.

Poema de Alta Mar I e II

I

Onde miro, ao admirar-te?
E ao advertir-me, onde mirar?
Dónde puedo ponerme a girar
y a bailar para conocerte?

De mí ya he hecho mi parte.
Yo lo sé porque a ti me atiro,
me lanço como se lança uma onda,
me desfaço qual se faz o querer-te.

Calla tu ventre insalubre,

porque allá yo no puedo mirarte.
Tu cuerpo, yo sé, es un arte,
es mala como la olla del mar.

Pero el agua no puede salarte,
puesto que yo te respiro.
Eu sei que teu corpo admiro,
pero no hay como no admirarte.

II

Não há como eu me redimir
do olhar que me arde
e me mantém à parte.

Não sei mais se há tal sigilo,
tal signo de ir
sem mirar a quem parte.

Não sei mais se há tal respiro,
tal grito que pede
ao implorar, e afogar-se.

Tal fogo que queima não há,
pois não há no alto mar,
esse choro, que é água.

Não sei mais se é de salgar-te,
ou se te salvo,
se te afago, ou se olho.

Onde ponho tal verde de mar,
pra te camuflar por amar-te?

Meu mar já é teu e teus olhos,
meus sonhos de Vênus, de milhas.

Onde te salvo em tal ilha,
se tal ilha não há?

Meu mar, tal tormenta a me ressacar,
é vento a atirar tal assombro, tal onda.

Onde, então, pra salvar-me, posso ver-te
e verter esse mar de imaginar-te?