domingo, 14 de outubro de 2007

A Brevidade da Vida.

Os pensamentos não se foram como o corpo,
ficaram nos papéis, nas folhas dos livros, das revistas.
Foi só uma parte da alma que se libertou,
deixou a outra registrada na mente do mundo
no que é eterno,
no que não é efêmero.
Deixou cantado os poemas da terra,
falando daqui e dali, num de tom de universo.

O universo cegou meus olhos,
penetrou minha cabeça no tempo de um raio,
me tornou sublime
tanto antes como eu era.
Meus olhos na terra se fixam.
Deixo filhos, deixo letras, falo a todos.
Apenas é meu corpo que se cala.
Não há morte que cale um homem,
até que todos os homens estejam mortos.
Os sentimentos perpassam,
as alegrias perpassam.
O homem vê a si mesmo num cortejo fúnebre
e espalha o pensamento nobre,
a visão que se tem da terra
e dos outros homens.

A dor é daqueles que ficam
nunca daqueles que partem.

Deixo o tato de meus pés na terra,
deixo o exemplo do homem,
do bem que o conhecimento nos traz.
Deixo a paz interior que senti antes da morte,
a relembrança.
Não deixo bens de fato,
deixo um grande apanhado abstrato de sensações humanas,
a admiração que tenho pela bondade,
a raiva que tenho pela injustiça,
pela impotência do homem
pela divergência do mundo.
Mas nessa hora não é a raiva que me consome.
Sou tomado agora por uma certa euforia,
certa ansiedade.
A dor já não me é tão incômoda.
As feridas tão rápido se cicatrizam.
É meu corpo que deixo, como dizem.
É um afago que espero,
um beijo último,
um último tato.

Deixo na caligrafia de meus escritos
a marca de uma mão trêmula,
a nostalgia de um registro de meus anseios,
as linhas de cada letra,
as palavras pensadas de um homem,
ser passageiro na terra.

Deixo linhas e linhas e linhas
sublinhadas de caneta vermelha,
para que eu lembre a todos,
para que eu marque a todos
com minha brevidade.

Na juventude dos olhos,
na mão indecisa,
no pensamento errante,
perpasso o tempo,
gigante profundo,
sentimento abissal,
mergulho seco.
Recebo a todos de peito aberto,
incerto da recepção dos outros.
Deixo linhas e linhas e linhas,
pois é o que há de concreto pra falar-lhes.
Falando da terra, falo de mim,
da persistência do povo
da consistência do povo.
Falo para as gerações futuras
de um certo labor que se alcunha um elo,
de um aberto invento que se propunha belo.
Falo das subidas e descidas,
falo da vivência da vida,
dos momentos sutis,
dos momentos nobres,
da sorte dos homens,
dos cortes etéreos
e feridas eternas,
das paixões da vida,
de passagens doces,
dos altos e baixos,
do fim do mundo, do tempo
da incoerência,
da incongruência,
da infância,
das sutilezas e belezas da vida,
dessa plenitude.
Falo das masmorras sombrias da alma
e do rancor.
Falo dos séculos e da história.
Falo de todos os homens.
Falo de mim
e da vida...

E sob minhas mãos, meu ventre.
Sob minha testa, antes quente
meu pensamento profundo.


(Dedico este poema a Alberto da Cunha Melo)

2 comentários:

Luanda Calado disse...

Publicar-se depois da morte
é dar, pelas costas, um pão;
é jogar um ramo de flores
numa casa morta, e correr.

Pobre de mim que já mostrei
minhas palavras incompletas,
e escondi, antes de morto,
cartas na manga da mortalha.

Todas as tardes que me deste
foram consumidas na espera
de tardes que não prometeste
e meus poemas não trarão.

Jogo-me completo no rio
para engrossar a correnteza,
que entra pela casa das máquinhas
e sai pelo quintal florido.

Senhor do tempo, dá que eu seja,
após todas as desistências,
um novo afluente a chegar
às tuas águas no verão.

Alberto C. Melo.

Luanda Calado disse...

Muito lindo o que você escreveu bê.
Muito mesmo.